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A Alquimia do Cinema © Francisco Weyl

© Francisco Weyl

Existe uma luta interior do homem enquanto ser criador quando ele se lança para construir a sua obra. É um processo de transformação, que o atrai para uma luta interior, que é a luta da sua própria transformação, portanto, uma luta transformacional, que opera sobre a matéria e sobre a natureza desta matéria,
Este processo é bem colocado por Jung, que lançava mão dos conceitos do inconsciente colectivo, a partir da construção de imagens arquétipas originárias dos desejos, satisfações, complexos, frustrações, (auto)repressões, etc.
Jung trabalhava este lado obscuro, da sombra, do inconsciente. Ao nível do Símbolo. Arte é Símbolo.
E nesse campo simbólico, a passagem artística é também uma passagem alquímica: são passagens e paisagens em transformação.
O ouro, sendo material, é também espiritual.
E só pode ser espiritual, não pode ser diferente do universo espiritual.
Transformar a matéria em ouro é para os alquimistas.
Transformar a Arte em ouro é para os loucos, para os santos, para os artistas, que crêem nos seus mitos, nos seus arquétipos, nas suas potencialidades de transformação.
Há quem alcance esta transformação, transformando-se a si próprio.
O estado alquímico do Cinema é, portanto, uma estado de combustão, de explosão, que lança estilhaços para todos os lados, estilhaços intocáveis, invisíveis.
O estado alquímico é o Cinema no seu estado de ãnima, o Cinema no seu estado de pulsão, o Cinema no seu estado de permanência, o Cinema no seu estado de latência, o Cinema no seu estado de eternidade, o Cinema no seu estado de explosão.
Estas reflexões levam-nos a propor o estabelecimento de relações entre o Cinema, o seu processo criativo, e o processo alquímico – não exactamente para explicar o que são um e outro, mas para construir possíveis analogias entre esses dois processos.
Sabemos que a Alquimia é uma não-ciência e sabemos também da violência que a Ciência cometeu e ainda comete contra a intuição e contra a magia: a Ciência acusa a magia de charlatânica (satânica?), por ela, a magia, não ter um objecto científico, etc. etc. etc. (e basta: não precisamos ir ao cartesiansimo científico, com o seu método e o seu objecto científico, etc. etc. etc.)
No decorrer da História, dentro de uma perspectiva antropológica e no decurso da viragem de um pensamento mítico para um pensamento racionalista, a Alquimia foi massacrada pela Ciência. A Ciência primeiro ataca, a seguir se apropria e controla os elementos alquímicos. A intuição e a magia, consequentemente, são catalogadas como objectos de estudo e alcançam um novo status, necessariamente, subordinado aos modelos científicos. Apenas depois dessa alteração de valores, portanto, depois desta mudança de estatuto provocada pela usurpação dos sentidos alquímicos pela Ciência é que esta passa a aceitar a Alquimia.
Em torno de 1540, entretanto, a Alquimia era considerada a Grande Arte e o seu processo, a Grande Ópera.
Retomemos, para efeito de análise, ao processo histórico e filosófico: quando Aristóteles interpreta Platão, na verdade, Aristóteles mata Platão. Ao elevá-lo, mata-o. O mesmo sucede com a Ciência em relação à Alquimia.
Por analogia ao mundo ideal e racional platónico, o universo alquímico não é perfeito. O alquimista tem aquela coisa mítica do homem isolado em seu laboratório. O alquimista é um mítico que actua no campo das potencialidades, probabilidades e possibilidades. O alquimista abandona os processos mecânicos, abandona os processos laboratoriais.
Porque o processo de busca da pedra filosofal não está limitado a um processo laboratorial.
O processo de transformação e de busca deste ouro, este ouro, mais que matéria, é o espírito, e esta transformação, mais que física, é uma transmutação interior.
Por analogia: o artista e o alquimista transformam a matéria, portanto, o processo alquímico e o processo artístico convergem para um mesmo fim, qual seja, o da transformação.
O universo alquímico objectivamente inicia-se no caos.
E o caos é a matéria bruta do artista.
O mundo, como nós o sentimos, é necessariamente caótico - no olhar do artista.
Até que ponto, o artista, ao formatar, não corrói o que é disforme, e caótico?
Até que ponto nós, artistas, não destruímos quando formatamos?
A nossa função não é outra além desta: Destruir.
Falar sobre o que se sente já é trair o próprio sentimento, é matar o que se sente.
O artista de carne e osso, humano, demasiado humano, sente a sua impotência, a impossibilidade de dar forma ao que ele sonha, aos seus arquétipos, caóticos.
Porque estes arquétipos nascem do caos e estão à priori da existência, acompanhando-a, como sombras, aqui e ali, surgem e desaparecem. Depender da luz, seja ela solar ou artificial, física ou psicológica.
O poema à priori, ou a escultura à priori, ou a pintura à priori, ou o Cinema à priori, são puro sonho, caos.
O caos é destrutivo, o caos é titânico, tem forças negras e ocultas dentro de si.
E este caos caracteriza a primeira fase do processo alquímico, chamada nigredo, que se corresponde com o estado de humor melancólico, com a morte, com a velhice, com o Inverno, com a cor negra.
O caos primitivo é o estado do sonho.
E voltamos outra vez para o inconsciente, para as nossas zonas de sombras projectadas e definidas por Jung.
O sonho é o Cinema à priori. O sonho é a escultura à priori, é a pintura à priori.
Antes de um escultor lapidar uma pedra, ele tem o resultado dela desenhado dentro de si. Antes da pedra ser tocada, modelada, a escultura é realizada na cabeça do escultor, e assim o quadro na cabeça do pintor e o filme na cabeça do realizador.
O abstracto concreto.
À posteriori, o filme, com o silêncio ou com os seus ruídos, com as imagens, com os movimentos de câmara, à posteriori.
Este ritual de passagem fílmico segue no sentido contrário da Alquimia, pois que retorna, do rubeodo (a última fase da Alquimia) para a sua primeira fase, a nigredo.
Da forma ao caos.
Da cultura à arte.
Tudo é passagem.
O processo alquímico é um processo de passagem.
O processo artístico é um processo de passagem.
O Cinema à posteriori, que é o Cinema concreto, o Cinema realizado, o Cinema técnico, o processo processado, não é mais arte, porque trai a sua própria origem.
A humanidade (re)produz padrões, estéticos, comerciais, mercadológicos, industriais. Consequentemente, o Cinema, enquanto Arte, possui uma linguagem, portanto, um sistema de signos, códigos e técnicas que são representados através de uma escritura, portanto, uma Gramática particular.
É demasiado fácil realizar Cinema: cumpra-se a regra, faz-se Cinema. Difícil é realizar Cinema com coragem. E é quase impossível transformar esta Arte, utilizá-la tal qual os alquimistas, sob o signo da transformação.
O Cinema, portanto, não tem nada de especial.
O homem mágico, o criador, que se coloca no processo fílmico, o criador que se coloca para fazer Cinema, se ele reproduz este Cinema - como este Cinema se nos é apresentado, este homem não é um homem verdadeiro, portanto, não será nunca um artista.
E um homem verdadeiro é necessariamente um artista.
Um artista da verdade é necessariamente um alquimista.
A verdade é intuitiva.
Como a Arte.

©
Francisco Weyl
Carpinteiro e Alquimista - de Cinema e de Poesia

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