A obra, mesmo não sendo uma extensão do artista ou propriedade do público que a ressignifica, é uma potência inerente e transcendente ao próprio artista, entretanto, um escritor, como, em geral, um artista, não se resume ao que ele escreve, ao que ele concebe. A obra de Jaime Pretório, em especial sua coletânea “1000 Aforismos recortes de uma vida” vai além das palavras e das ideias que ele usa para expressar sua ampla reflexão sobre a condição humana, nestes tempos em que já nem sabemos ao certo se sobre ou sub vivemos.
Nesta obra, o autor discorre sobre questões cotidianas, convocando-nos a uma jornada de introspecção, a partir de aforismos sobre normas sociais, dogmas religiosos, convenções filosóficas, mensagens poéticas. Ler o autor impõem-nos desafios, ainda que na sua estilística aforística, o sintagma frasal se encerre em si próprio, através de uma mensagem fragmentária, no caso de Pretório, uma mensagem fragmentária sobre os diversos temas que dizem respeito à própria existência do poeta e, simultaneamente, aquilo que está à volta dele.
Estes 1000 Aforimos, portanto, colocaram-me desafios, porque, confesso, enquanto escritor, também trabalho o aforismo na prosa e na poesia, tenho uma grande admiração por esse estilo, que também busco utilizar para dar a volta a um pensamento metafísico, aqui, buscando uma afinidade estilística com o trabalho desse poeta, mas poeta não escreve a sua poesia para ser analisada, mas para que seja sentida.
Pretório tematiza política, religião, economia e finitude, sem oferecer respostas prontas, convocando o leitor a confrontar suas próprias contradições. E não hesita em criticar a sociedade contemporânea e por isso expõe as hipocrisias dos sistemas neocoloniais que perpetuam a desigualdade e a injustiça. Sua poesia crítica é uma urgência ante os dilemas nacionais e globais.
Ao primeiro olhar, um conjunto de fragmentos, aforismos que, isoladamente, encapsulam reflexões genéricas sobre a vida, a morte e o significado da existência. No entanto, é a integração entre esses fragmentos que a leitura salta de sua imanência. O aforismo é, em essência, uma forma literária que demanda síntese, coisa que o autor domina, com frases curtas como micro mensagens imensuráveis, quando examinadas com profundidade.
A escolha por essa forma literária de matiz filosofal traduzida em reflexões sociais afetam o leitor de maneira direta, mas sem perder a delicadeza da poesia. Pretório utiliza o aforismo como uma "semente", como ele próprio (d)escreve, para germinar e florescer diversos gêneros literários, como contos, novelas e poesias, que constituem a sua produção literária. E o aforismo se torna um ponto de partida, que pode ou não ter um porto de destino.
A força da escrita simples mora nesse potencial de multiplicação das ideias, onde cada verso aborda temas universais, apresentando-nos paradoxos filosóficos, abrindo espaço para questionamentos sobre o ciclo da vida e a inevitabilidade da morte. Mas, quando o autor afirma que "a morte é no fundo uma coisa boa se você pensar bem", ainda que este conteúdo esteja em desacordo com as concepções existeciais do leitor, a linguagem poética torna as provocações acessíveis e o tom dos versos, muitas vezes irônicos, não diminui o impacto do tema.
O autor sabe que a poesia está nas palavras, como ele próprio afirma, mas no fundo sabe que as entrelinhas escondem muito mais do que as linhas escrevem. É um diálogo de metáforas e ironias, permitindo que as palavras ressoem e reverberem dentro de cada leitor, mas com uma assertiva opinitavia do autor, com seu estilo aforístico, combinado à filosofia e ao lirismo, ao pessoal e ao político. E assim tráfega entre a esfera individual e a coletiva e na contramão de ambas as vias. Em suas curtas digressões, trabalha com ironia, ao mesmo tempo com uma crítica em que busca repensar o nosso tempo, da filosofia à religião, da política à economia, da arte à morte.
Há temas do cotidiano, como um diálogo com um motorista de Uber, ou seja, a poesia na vida a partir da existência pessoal e da vivência com o coletivo social, passando uma mensagem de esperança, mostrando através da mensagem poética, que a sensibilidade, o coletivo são também da propriedade do humano e que são muito mais reais e solidários do que a própria dureza, que é o capital.
E em cada um desses momentos, o autor conduz o leitor para um espaço de reflexão, ora desconcertante, ora iluminador. A riqueza deste multi-universo mescla o profundo e o banal, sem perder a coesão ou a clareza de sua visão, da superfície ao âmago, do limbo à reminiscência. A sequência temática, embora possa parecer caótica, tem uma lógica interna por onde são destilados pensamentos que refletem esta natureza fragmentada, ao mesmo, interconectada, da vida.
Além dos aforismos poéticos e políticos, a obra de Pretório se expande para outras formas literárias, como contos, fábulas, novelas e romances, sendo, essa pluralidade, portanto, reveladora da dimensão de sua literatura, que vai desde a escrita à narrativa oral e videográfica. Sua pesquisa também inclui a leitura, interpretação e apresentação de teóricos como Kopenawa e Krenak, entre outros autores indígenas que ele referencia com o seu trabalho que se traduz do forma de aforismo, numa síntese que é também dialética e marxista.
Ao longo de mais de 26 livros, Pretório mantém a sua dialógica com a multiplicidade, razão porque a sua obra "1000 Aforismos, recortes de uma vida" pode ser vista como um microcosmo dentro deste universo que o autor constrói em maior escala. Cada aforismo é um tijolo deste construto, onde caminha no deserto humano na sua profunda diversidade, entre nuances dos diferentes: a raiva, o medo, a esperança, a paixão, a solidão.
Seus aforísmos políticos, sociais, poéticos e filosofais revelam o seu conhecimento sobre a alma humana, ele, que é um cidadão do Marajó, em retomada, e que se assume um indígena, simultaneamente, assume a sua negritude, evoca a ancestralidade na sua escrita. Com uma história marcada pela herança cultural dos próprios pais, caboclos da Amazônia, Pretório fornece-nos riquíssimas reflexões identitárias e sociais. E ao afirmar suas identidades indígenas, mesmo com a dificuldade de rastrear sua origem entre os povos originários amazônidas, Pretório toca em temas de pertencimento e resistência, refletindo sobre como as relações de poder moldam as identidades culturais e sociais no Brasil. De seus aforismos, a provocação constante, um convite para refletirmos sobre nossa posição no mundo e os valores nos orientam à realidade ou à nossa fragilidade.
Carpinteiro de Poesia Francisco Weyl
Lisboa, 13.10.2024
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