Os fenômenos culturais não sucedem por decreto ou por vontade de indivíduos. Eles resultam de lutas históricas e se processam de forma dialética, dinâmica, no interior das sociedades, no imaginário, nas práxis e nas relações entre nações, grupos e indivíduos. E a História, portanto, não se constrói com narrativas, mas com interpretações, a partir de vivências, ações concretas, reais, também subjetivas, e até mesmo aleatórias, enquanto que o ato de falar em si, ele se faz a partir da experiência, e não pode resultar em conclusão, mas em processos, que disparam, interferem, e referenciam desejos e potências de novas histórias, memórias, tradições.
Os amazônidas, sabemos muito bem o quanto é sacrificante afirmar e preservar as nossas tradições, contra discursos e práticas pressupostamente híbridos, mas que, por trás das máscaras desta contemporaneidade, utilizam-se das publicidades e dos apoios empresariais e governamentais para piratear e institucionalizar – silenciar – as produções artísticas e culturais das comunidades periféricas.
E nós, que temos uma postura periférica, sabemos muito bem o quanto é danosa a visão mediática e institucionalizada da arte e da cultura, que retira das pessoas o que elas podem vir a ter de mais sagrado, o que elas de fato são e desejam.
Este massacre físico e ao mesmo tempo intelectual contra a Amazônia se escreve nas linhas e entrelinhas acadêmicas e mediáticas e é fortalecido, pois que financiado, por um ciclo industrial cultural que corrobora para uma tentativa histórica de aniquilar todo e qualquer pensamento, toda e qualquer forma de resistência amazônida.
Na Amazônia das contradições, as heranças encontraram refúgio, primeiro na natureza indígena, através do seu revolucionarismo primitivo, e, a seguir, na resistência negra à opressão e à dominação branca. A Amazônia, contraditória, portanto, desenvolveu-se com o sacrifício, e a exploração da força de trabalho desses povos, índios e negros, que aqui residiam, ou que para cá vieram, arrastados à força.
Os valores amazônicos são seculares e pertencem a outro tempo, mítico, e não à cronologia histórica do homem branco. A imponência dos valores originários da Europa petrificou-se através de palácios e igrejas, idéias e pensamentos, que se sobrepuseram a uma arte ligada a terra e a história da Amazônia e do Brasil. Mas, a Arte amazônica é a taba, a oca, e não o neoclassicismo e/ou o barroquismo. E o patrimônio histórico de um país é a sua luta social, a sua consciência política, e as suas formas populares de resistência, contra todas as formas de dominação. Reverenciar os europeus, nesse sentido, significa reafirmar o domínio branco sobre a História da Amazônia.
(...)
Um dos meus mais contundentes (e repetidos) textos (e discursos) é o de que os povos amazônidas não têm tido condições de manifestar o seu inalienável direito de conduzir os sues próprios processos, quaisquer que sejam eles, ao seu próprio modo. E estes direitos têm-lhe sido retirados, conforme um histórico e secular processo de colonização e neocolonização, caracterizados por um silêncio e ignorância deliberados. (O fenômeno é facilmente identificado na miscelânea de políticas nacionais, todas nascidas no centro-sul-sudoeste, pelas ideias e mãos de tecnocratas que desconhecem diferenças políticas, sociais, econômicas, geográficas, e culturais deste país-continente, cuja sociedade não pode se adequar, mas forçosamente se adequa aos padrões preconizados por organizações e empresas internacionais.)
São estes os interesses que destroem os patrimônios culturais dos povos tradicionais e das comunidades amazônidas, disseminando nestas uma dependência ao envio de recursos, a maioria dos quais manipulados por instituições, cujos gestores têm interesses duvidosos. Assim sendo, o que quer que seja que produzam, ou que façam, os amazônidas, estas experiências ficam subordinadas a uma conceituação, interpretação, e divulgação, institucional, e mediática, que se vai reproduzindo em escala “local”, já que também são executadas por alguns cidadãos amazônidas - sem nenhum horizonte no qual possam afirmar as suas diferenças, e com o devido estímulo ou omissão das instituições e mídias.
Mas, ao defender o direito dos amazônidas gerirem a sua vida, e a região do jeito que eles desejam, necessariamente, enquanto pesquisador social, eu me coloco diante de um aspecto contraditório, porque é fato que a cultura “local” está absolutamente impregnada com os valores das culturas – por assim dizer – externas, “globais”, que invadem as casas das pessoas via televisões e rádios, mediante notícias, programas, novelas, e publicidades dirigidas ao consumo em larga escala, comum aos grandes centros urbanos, brasileiros e internacionais.
A complexidade deste fenômeno de natureza política e social – e de dimensões antropológicas – este “do jeito que os amazônidas desejam”, portanto, está contaminado pelas proposições das grandes necessidades de consumo, quer dizer, da fabricação do desejo destas necessidades. E como jamais poderei arvorar-me o dom de determinar o que de fato é ser “amazônida”, e o que não o é - pois que está contaminado por interesses outros que não os amazônidas (e também porque este termo é um conceito em construção) - preciso me distanciar, enquanto pesquisador, para que eu possa interpretá-las à luz da ciência, e, do mesmo modo, sucumbir aos processos das vivências, e experiências que desenvolvo – de forma natural e artística, com as comunidades periféricas e quilombolas.
É um equilíbrio, necessário, mas apenas para observar os fenômenos, jamais para afirmar verdades sobre eles, porque, ao defender o direito dos amazônidas conduzirem os processos da forma que eles desejam, eu também terei de estabelecer balizas para dissociar os contrastes, resgatar valores tradicionais que vem sendo destruídos, e que já estão quase soterrados, pois que esquecidos e domesticados, o que fatalmente me colocará em confronto com os novos (e híbridos) signos das atuais manifestações culturais “locais”, dos modos de ser, dos comportamentos das pessoas, e da forma que a comunidade encaminha o seu próprio cotidiano, ou seja, do jeito que ela deseja, do jeito dela.
Considerando-se todo este (nosso) percurso histórico, a partir de nossas viagens aos diversos municípios da Amazônia Paraense, com ações do Cinema de Guerrilha / Cinema de Rua, tencionamos nos debruçar de forma reflexiva sobre estes processos, de forma a construir uma narrativa científica com base em teorias e práxis, que se forjam na realidade das comunidades e a partir de seus protagonismos.
Nesse sentido, as nossas expectativas são as mais sinceras e rigorosas possíveis, dentro de uma dimensão do aprofundamento dialético de pesquisa, recorrendo à fontes que tanto nos conferem certezas quanto desmontam nossas hipóteses, de forma a forjar o princípio real de uma ciência que se renova no cotidiano do próprio objeto pesquisado.
Pensamos que este percurso do agir/refletir é uma fronteira também para afirmar a produção intelectual organizada e disseminada pelos amazônidas na sua própria Região, o que sem dúvida resgata valores locais e os redimensiona para além de suas próprias geografias, articulando com diversos tipos de teorias e práticas sociais e culturais que são trabalhadas em todo o país e fora dele.
© Carpinteiro
FOTO: Dri Trindade
Nota do Editor:
"Estéticas de Guerrilha" são o tema da Tese de Doutoramento em Artres Plásticas que Francisco Weyl desenvolve na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto.
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