Glauber Rocha está vivo no coração da Amazônia. Cheguei a esta conclusão depois que assisti “Cabanos” (BR, 2009, Digital, 60 Min), filme do professor Sebastião Pereira, que ministra aulas de História no Temístocles de Araújo (T.A.), escola pública localizada no bairro da Marambaia.
A
obra é necessariamente um contraponto a tudo o que até hoje tem sido realizado
no cinema paraense, cuja estética reproduz velhos padrões impostos por
culturas dominantes.
A
partir de uma família de ribeirinhos, “Cabanos” revela de forma poética a única
experiência revolucionária na qual o povo tomou o poder no país.
Mesmo
com todas as suas contradições, este fato histórico - junto com a guerrilha do
Araguaia - nos coloca a nós, paraoaras, na vanguarda das lutas pela liberdade e
pelos direitos dos povos e das comunidades tradicionais.
Quando
um cineasta se dispõe a revisar um fato histórico numa perspectiva artística,
ele tem consciência do óbvio, ou seja: realidade e ficção são duas substâncias
heterogêneas que podem ser por ele misturadas na alquimia das imagens
fotográficas, as quais, justapostas, dão-nos a ilusão do movimento.
E
foi isso que o professor fez - antes, durante e depois de suas aulas: sem a
menor pretensão de ser um realizador (profissional) de cinema, ele mostrou como
é possível fazer um bom filme; sem dinheiro; sem economia (de esforços); com
jovens (cerca de 100 alunos) - sem (nenhuma) experiência artística (Pasolini
também não gostava de trabalhar com atores profissionais entre outras coisas
porque eles eram muito caricatos); e – o que é bem mais importante porque revelador
de sua coragem – sem nenhum apoio institucional e empresarial.
Com
cenas rodadas na ilha de Mosqueiro e em alguns plateau aonde aconteceram
episódios históricos marcantes da revolução cabana como Curuçá, Belém, Icoaraci,
Ilha das Onças, e Mosqueiro, o filme pode muito bem ser enquadrado na corrente
estética do cinema pobre, que tem origem em Cuba (Humberto Solas) e se ramifica
em países como EUA, México, Cabo Verde, Brasil, assumindo em cada um destes
locais, características particulares fundadas nos mesmos princípios, quais
sejam os de - sem economia da original inteligência artística, realizar filmes
(de baixo orçamento) com temáticas sociais.
Cinema
pobre, sim, mas, para os ricos de espírito!
O
grande poeta-realizador soviético Andrei Tarkovsky dizia que o cinema é uma
arte triste porque depende do dinheiro para sobreviver, entretanto, Sebastião
Pereira conseguiu provar o contrário na Amazônia-Paraoara: o cinema transcende
aos interesses econômicos e afirma uma consciência, histórica.
Seus
atores-jovens desempenham personagens (mais) maduros – e (no filme) adultos
(ribeirinhos) dialogam com as crianças, com uma responsabilidade didática
absoluta.
A
produção, que se esmerou em constituir figurinos de época, expõe a nu a pobreza
dos ribeirinhos.
E
a câmera (a câmera!), operada pelo nosso professor-realizador tem o compasso da
batida do seu coração, com panorâmicas, travellings, e planos-sequências que
delimitam a lógica linear da montagem, também entrecortada por uma narração que
nos explica porque a cabanagem sucumbiu em no interior do seu processo
revolucionário, talvez – ouvi dizer - sem um projeto político definido.
A câmera de Sebastião Pereira é orgânica, traduz a pureza do homem ribeirinho, ou seja, o olhar de maresia à natureza a sua volta e também aos amigos (com os quais dialoga).
É possível perceber que este olhar (subjetivo) tanto pode se
fixar em um ponto quanto pode também titubear, retornar ao ponto inicial e de
seguida procurar um outro ponto – e (de forma lancinante) intensificar e favorecer
algumas ações (em espaços diversos) além do horizonte, mas não em uma paisagem
em si, ao contrário, em “passagens” - de uma condição, subumana, para outra,
nobre.
O
professor-realizador-diretor-de-fotografia-produtor-operador-de-câmera
Sebastião Pereira é intenso no que faz.
Os
diálogos, quase todos em som direto, os ruídos,
intermitentes, os diálogos das personagens, tradutores das nossas velhas
angústias revolucionárias.
Os
sons da mata, as canções, os poemas, elementos sinestésicos, combinados, plano
a plano, quadro a quadro, impactam o inconsciente de forma a virar-lhe pelo
avesso, trazendo o cérebro de volta a uma realidade da qual todos, pasmados,
fogem.
Uma
idéia na cabeça e uma câmera na mão!
Grande
Glauber!
Mas,
mais que uma idéia, uma ação reveladora (inexorável) de resistência cultural.
Guimarães Rosa dizia que viver é muito perigoso, mas que o importante mesmo era
ter a coragem dentro de si.
Coragem
não falta ao nosso professor-realizador.
Com
o abismo à sua frente, ele salta. Este salto, artístico por excelência,
coloca-o no patamar dos que compreendem que o que é fazer história.
©
Carpinteiro
Belém
do Pará, 2009
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