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CRÔNICAS BRAGANTINAS: 45 dias de ajuruteua

 

Mudei-me para Ajuruteua no dia que tomei a primeira dose da Astrazeneca, mas não estava nenhum pouco de corpo mole, antes, ao contrário, entusiasmado, por mudar de cidade e em certo sentido, mudar de vida.

Habitava uma kitnet no centro de Belém, espaço pequeno e calorento, que dividia com Roberta Mártires, sendo que ela também fez esta viagem comigo até a praia, onde hoje, depois de um mês e meio, consigo esboçar os primeiros relatos sobre este processo.

Processo porque a vida em si é uma construção, em mutação.

Nômade por excelência, hoje estou a fazer uma coisa que eu sempre quis fazer que é morar na praia.

Quando chegamos, encontrei a Casa do Professor desabitada, em razão da pandemia, raramente havia hóspedes por aqui, que tanto acolhemos, e nem pessoas da família.

A Casa tem este nome por causa de meu falecido irmão, Nonato, que teve uma parada cardíaca enquanto ministrava aulas, um choque para todos.

Ainda guardamos o capacete vermelho que meu irmão usava, hoje, símbolo de uma Biblioteca que estamos a tentar construir, na esperança de que se torne um carro-chefe de sonhos e utopias que desejamos realizar.

Falo da Biblioteca Comunitária Professor Nonato, das oficinas de crochê criativo que a Roberta deve organizar, das oficinas de audiovisual que irei ministrar, e das sessões cineclubistas, que deram origem, há seis anos, ao Centro Cultural Cineclube Casa do Professor.

Portanto, é uma retomada de processos artísticos e sociais, ao mesmo tempo, uma experiência de convivência e habitação, porque afinal de contas a Casa do Professor é a casa da família Weyl, e em certo sentido, a casa de todos que por aqui já passaram.

É uma casa de memórias, mas também uma casa que tem ainda alguns problemas que estamos a enfrentar com a manutenção do espaço, tábuas velhas, telhas quebradas, vegetação a crescer, ou seja, muito a ser cuidado, com amor e carinho.

E isso demanda tempo e dedicação, e dinheiro.

 


Com o tempo da praia, estamos a cuidar da casa e revitalizar a cena cultural numa discreta abordagem à comunidade, parte da qual já me reconhece em função das sessões de cineclube aqui realizadas.

Capinas, roçados, pinturas, troca de telhas, e de tábuas, pequenos reparos pelas mãos do amigo Laudec, que vem de Bragança, do qual me torno um ajudante e com o qual aprendo algumas noções de carpintaria e serviços gerais de marcenaria.

Quanta felicidade ver o terreno aparecer, particularmente, o cajueiro, por detrás da casa, que agora, inclusive, tem um balanço, para as crianças, com o sonho de que este espaço seja um ponto de fuga em dias de excesso de visitantes em Ajuruteua ou mesmo um canto para estudar, tomar café, ver a lua, conversar, namorar.

Tudo ao mesmo tempo mas uma coisa de cada vez, realizamos o que temos de fazer com o tempo da praia e à lógica da praia nos adaptamos, alterando as vezes as tarefas por outras que se tornam prioridades, conforme o momento que elas se apresentam.

Quem mora na praia sabe dos problemas da praia, quando chove, a água entra na casa, as iguanas e os urubus danificam telhados, a energia é sobrecarregada, há fugas e quedas, e mesmo cortes prolongadas, nem sempre a bomba de água funciona, além da água ser barrenta, com cheiro e sabor de enxofre, e pode estar contaminada pelos lençóis freáticos poluídos por fossas, mas ainda terei de fazer este teste.

Os produtos são bem mais caros que os do comércio de Bragança, onde também nada é barato, então, temos que nos programar e ir até o núcleo urbano fazer compras, mas isso também aumenta os custos, por causa do deslocamento, de ônibus ou de taxi.

Quem vem a praia sabe dos problemas da praia, e sabe que a praia tem grandes vantagens, que é a paz, tão presente nos dias e meses que não são férias nem feriados.

Acordar com a luz do sol, dormir com a brisa do mar.

É muita força e energia.

O mar cura.


 

Em cerca de 45 dias, posso dizer que estamos numa fase de adaptação, porque ainda não nos sentimos exatamente sozinhos, com as constantes visitas de pessoas da família, e até de alguns amigos, que recebemos com carinho, apesar das reservas que eu tenho imposto a presença de pessoas na casa.

Porque estou a mudar paradigmas e mudanças nunca são fáceis.

Acontece que esta casa acolheu dezenas de pessoas, entretanto, nem todas elas cuidavam do espaço como deveria ser.

Do mesmo modo, a lógica de que a casa da praia é a casa de todos concorre para que a casa não seja de ninguém, isto é, poucas pessoas de fato se responsabilizam pelo cuidado, ficando sobrecarregadas e até mesmo chateadas pelo fato de que há pessoas que usaram este espaço mas não zelaram por ele.

Foi por esta razão e em função de algumas reflexões  relacionadas a este fato que eu modifiquei o estado das coisas e coloquei em operação uma mudança, reservando a casa aos familiares, e condicionando a visita a um projeto de oficinas comunitárias, ou seja, para fica na Casa do Professor, tem que disponibilizar uma oficina gratuita para a comunidade.

Transformamos a Casa do Professor num projeto social e artístico, que estamos a colocar em andamento, aos poucos, se possível, a partir do mês de Agosto.

Roberta vai ficar responsável pelas oficinas de crochê, e eu pelas oficinas de audiovisual e pelas sessões cineclubistas, além do próprio site, que eu desenvolvi.

É pela via do site que eu pretendo comunicar as ações da Casa do Professor.

A Casa se tornou, portanto, um projeto.

 

Roberta começou por pintar do lado de fora e com seus desenhos a luz entrou na Casa, juntos, organizamos o espaço – e ainda há muita coisa para estruturar, uma lista de prioridades e necessidades.

A gente trabalha e a gente se diverte, cada um ao seu próprio estilo e de acordo com o seu tempo.

Estamos sempre em estado de produção, de montagem e de desmontagem, enquanto, no intervalo disso, criamos, estudamos, pintamos, desenhamos, coletamos madeira na praia.

Roberta se dedica à fazer peças em crochê e os demais afazeres, que dividimos de acordo com a dinâmica desta casa de praia, que durante a pandemia ficou sujeita ao sol e a chuva e ao mar.

Conseguimos organizar a Biblioteca, inicialmente, com alguns livros da Roberta e agora iremos começar uma campanha de doação de livros.

Já estivemos no CRAS, onde nos cadastramos e tencionamos estreitar relações com as entidades da rede de assistência social de forma a valorizar as oficinas que iremos disponibilizar para a comunidade.


 

E muito nos preocupa o reordenamento da praia, com o surgimento de uma espécie de bairro classe média a partir da Casa do Professor, que reinou isolada durante anos sobre o mangue, mas agora, sofre assédios e ameaças de invasão, sendo que perdemos espaço em nosso terreno.

Este assédio vem de setores políticos e empresariais, alguns dos quais influentes em Bragança do Pará, e que construíram suas casas nesta parte de Ajuruteua.

Deixa eu explicar que a praia de Ajuruteua começou na Vila dos Pescadores (Vila do Bonifácio), sendo aqui o que se chama de campo do meio.

Este campo do meio, divide-se à direita e à esquerda, pela via principal, que é a Rodovia que vem desde Bragança até aqui a praia.

Há aglomerações de casas e de comércios e restaurantes e pousadas logo na área da chegada do campo do meio, mas se você se desloca sempre à esquerda, em direção à Ilha do Chavascal, vai ver que há espaços mais abertos.


 

É neste espaço mais aberto que habitamos e que aos poucos está a se renovar com novas moradias, muitas delas construídas por pessoas que têm dinheiro, ou seja, o projeto Orla de Ajuruteua reordenou a praia mas não deslocou pescadores e moradores pobres para cá, ao contrário, foi a classe média que invadiu a praia.

A estrutura da Orla finda há cerca de 600 metros de Casa, entretanto, há um certo lobbie para que a estrada chegue até a praia e os proprietários possam desfilar com seus carros seja por esta estrada, seja pela areia de Ajuruteua.

E assim assistimos aquele excesso de final de semana, com vários carros som alto, velocidade, predadores que não respeitam nem a natureza, nem a praia, e nem os moradores de Ajuruteua.

Foi por isso que eu fiz uma placa, pequena, mas forte: respeite os moradores de Ajuruteua.

Porque a lógica é contrária, o cidadão da cidade chega aqui com a cabeça da cidade, a cobrar a estrutura da cidade, sem respeitar os moradores, que eles pensam que devem estar ao serviço dos turistas.

Uma coisa é recebe bem um visitante, outra é aceitar que predadores entrem na tua casa sem bater e faltem com respeito com o espaço em que habitas.

O carro da limpeza pública faz a coleta duas, três vezes por semana, mas não raro assistimos mal-educados deixar seu lixo na praia.

Eu recolho espontaneamente o lixo diante da Casa do Professor.

Recolho também cordas e sandálias velhas, porque aqui na praia , além de ajudante de obras, eu tenho me esforçado por ser artista que faz obras a partir do que é descartado pela sociedade de consumo.


 

Fiz umas janelas de cordas, que dizem ter ficado bonitas, também fiz o cercado e pintei, além de junto com Roberta, recolhi madeiras valhas, que transformamos em suporte de pinturas, fazemos quadros artísticos e placas com frases educativas e culturais.

Vivemos nós dois de auxílio emergencial e aqui e ali, conseguimos emplacar a venda de peças de crochê que a Roberta produz, e alguns projetos que eu possa gerir.

Estamos a pensar em buscar a sustentabilidade também deste espaço, a Casa do Professor, e por esta razão estamos revitalizando o espaço, vamos organizar os quartos e disponibilizar para temporadas, criando também uma espécie de cadastro.

Pretendemos abrir um edital para ocupação da Casa, como uma espécie de Residência Artística, para organizar a agenda até o final do ano, e observar o resultado da experiência, sendo que haverá demanda de ampla concorrência, mas também convidaremos pontualmente pessoas amigas que sempre estiveram do nosso lado a nos apoiar em ações políticas e culturais.

São com estas pessoas que inicialmente contamos, mas já recebemos muitas demandas de pessoas interessadas em visitar e realizar as oficinas, portanto, é um momento de organização e adequação aos projetos que aqui se vão atravessar.

Paralelamente, há o Festival Internacional de Cinema do Caeté – FICCA, que eu coordeno, e ainda tem o meu doutorado, que está em andamento, e ao qual preciso por força me dedicar, continuar a escrever e publicar artigos e avançar a Tese, sendo que Roberta deverá se inscrever em alguma pós-graduação no campus Braggança da UFPa.

 


A Casa do Professor tem dois pavimentos e quatro quartos, sendo: na parte de baixo, um quarto, uma sala de estar que se liga à sala de jantar em “L” (letra “éle”), e uma varanda exterior também em “L”; e, na parte de cima, três quartos, com uma pequena varanda frontal; sendo que em ambas as varandas, podemos desfrutar a belíssima vista para o mar.

É um espaço abençoado, que, outrora, era isolado, mas, hoje, possui vizinhos, sazonais, que aparecem nas férias.

E alguns são predadores, nem pedem licença para entrar no terreno quando precisam de uma tábua para desatolar o carro, e pensam que os moradores lhes devem servir como escravos, colocam som alto, passam em alta velocidade, etc.

E para piorar, os agentes das instituições públicas parecem fechar os olhos para estes abusos, ao contrário de coibir-lhes, até lhes facilitam a vida.

Eu próprio vivi dois tipos de assédios aqui, em razão da tentativa de abrirem mais espaço para a rua por onde passam carros, ou seja, a prioridade é dos veículos e não dos pedestres, quando os carros deveriam ficar estacionados longe da praia.

Estou quieto no meu canto, não vim para cá fazer confusão com ninguém mas irei escrever uma carta aberta ao prefeito, ao promotor e ao defensor público, e aos secretários municipais de ambiente, bem como ao delegado e ao comandante da polícia militar e da guarda municipal e da Defesa Civil, para narrar estes assédios que sofri e solicitar informações sobre os projetos de reordenamento da Orla.

É portanto um aviso, até porque sou jornalista e não estou de olhos fechados para o que está a ocorrer diante de meus olhos.

Nestes dias de Casa, além das tarefas já aqui citadas, consegui dependurar um baloiço no cajueiro, e esse foi dos momentos mais felizes de minha vida.

Felicidade também irradia quando eu construo peças cuja estrutura é destacada no próprio objeto artístico, fico feliz também quando pinto, porque a experiência com desenho é muito recente.


 

Sinto-me mesmo como um menino.

E o menino ou a menina que em mim habita saúda o menino ou a menina que te habita.

E muito eu poderia ter escrito se tivesse me dedicado a manter este diário, com detalhes e nuances de experiências que tenho passado.

Por exemplo, a praia tem muitos cães abandonados e famintos e doentes e muitos destes cães vêm tem conosco em busca de afeto e alimento.

E nós os acolhemos, damos-lhes de comer e de beber.

Alguns destes cães nos adotam e outros os adotamos, nós.

Recentemente, a Violeta pariu três cães, dois meninos e uma menina.

A Belinha praticamente nos adotou e tem ficado mais em casa.

A malhadinha, irmã dela, nunca mais retornou, depois de ter sido escorraçada pela Violeta, que agiu para proteger a cria e também a comida.

Malhadinha as vezes vem aqui apenas com a Branquinha, que a Violeta respeita.

Há muitos outros cães que se juntam em matilha, no cio.

Já compramos remédios, ração, coleira, estamos a decidir o que fazer das crias de Violeta, se adotamos, se doamos, o que fazer com Violeta, que eu amo, e com Belinha, que é um amor de cachorra.

Acho que vamos ficar com algumas delas, mas ainda estamos em dúvida.

Também adotamos uma gata, trouxe-a a nossa amiga Lene, que habita praticamente do lado de casa, que tem uma postura similar à nossa.

Nós, eu e Roberta, e a Lene constituímos um núcleo de resistência, porque habitamos nesta fronteira do que Ajuruteua era e no que a querem transformar.

Além da gente, há uma casa perto ocupada por artistas.

Somos nós nesta fronteira.

A resistência.

Oxalá nos abençoe para que o nosso trabalho alcance o coração das pessoas que desejamos alcançar.

 

Praia de Ajuruteua, 20 de Julho de 2021

#45diasdepraia

Francisco Weyl

 

 

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