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A crônica e o despropósito

Saguenail interroga as imagens e de suas respostas ele constrói a narrativa documental. Disse-me isso numa entrevista que perdi, assim como muitos de meus filmes e conteúdos imagéticos ditos brutos, não finalizados para documentário ou outros projetos audiovisuais.

E este não foi o primeiro material pelo qual muito trabalhei para o produzir que eu o perdi. Tenho muitos filmes que se tornaram narrativos porque os perdi. Encantaram-se no terreno do mito. Capaz que eu os re-filme um dia, quem sabe?

Saguenail interroga as imagens que capta por quaisquer razões, e, destas, revela uma lógica filosófica documental audiovisual, mas, muitas das imagens que eu captei - e que perdi, não as poderei interrogar, quando muito, posso fazer um redobrado esforço para re-memoriá-las, re-contando-as, e assim reescrevo meus filmes, ainda que eu tenha imagens fotográficas destas produções, mas não mais os materiais audiovisuais, os filmes.

Não mais interrogo, portanto, estas imagens que perdi, entretanto, para além delas, interesso-me pelos diversos fenômenos que evocam, no meu pensar, ainda que evocadas a partir de palavras, como estes filmes agora narrados e oralizados - que eu perdi e que tento refilmá-los na lógica de minhas reflexões, ou de minha memória, cujos enunciados ela constrói a partir de meus sentimentos.

Saguenail é um Mestre que escolhe o que e onde filmar e a partir do que filma, indaga suas próprias imagens, que são recortes de quem ele é quando ele filma este grande mundo, mas, eu, que nem tenho mais as minhas imagens – perdidas – mesmo assim as indago, já não físicas, filmadas, mas na abstração e projeção delas, portanto, na sua potência imaginária.

Quando eu filmo é como quando eu escrevo, eu me perco, e encontro pedaços de mim que se dispersam quando eu penso que crio o poema que me cria, entretanto, tenho andado afastado das crônicas por razões que nem a razão conhece, mas, apesar disso, a desenhar esboços de sonhos, e a sonhar poemas, pintar palavras que obram no meu quintal, ou escrever em caminhadas com os cães, enquanto disparo pensamentos que me fortalecem, e me banho nas águas do mar de Ajuruteua, onde estou há cinco meses.

Saguenail me ensinou tanto em pouco tempo e ainda hoje eu sinto o vento dele soprar nos documentários que eu realizo, pelo que esta história entra nesta crônica porque a pretensão deste texto é a de documentar um momento que se perdeu em algum pedaço de minha memória.  

Esta crônica fala de imagens, que, mesmo dispersas de minha memória, elas me constroem, e fazem-me ser o que ser que eu sou, este um aqui que escreve e sente enquanto escreve, no tempo que pensa na próxima palavra, ou , que intui de cada palavra o sentido que ela vai construir, para que a imagem, enfim, seja livre de quaisquer conceitos e aberta à ressignificações semióticas.

Importei do método de indagações cinematográficas de Saguenail um sentimento que me faz olhar esta fotografia que motiva esta crônica e a partir dela dialogar com o cinema documentário e com a minha própria antropologia sentimental.

Rezalenda que Fidel Castro nasceu nesta comunidade de Cocal, em Tracuateua, região dos Campos Naturais, Nordeste do Pará, onde os Cabanos montaram acampamento, entre 1835 e 1840, e até já foram localizados cacos de cerâmicas indígenas, achados arqueológicos, como tesos que podem ter origem ameríndia.

A partir destas imagens físicas que se dissipam, enquanto as abstrações dispersas se recompõem, foi neste espaço – no espaço desta fotografia, que eu partilhei uma oficina de poesia com exercícios criativos a partir do poema "O menino que carregava água na peneira", do poeta Manoel de Barros.

Quem me levou até lá naquele 23 de Agosto de 2017, foi o professor e historiador Danilo Gustavo Asp, levou-me, na garupa de sua moto, pelos campos de Tracuateua, onde ele trabalhava com o tema pedagógico “Independência do Brasil e identidade: quem são nossos heróis”, entre crianças e jovens do 5º Ano da Escola Professora Maria Lucimar de Castro Castelo Branco.

E toda esta imagem aqui descrita ou sentida, todas estas palavras lidas ou projetadas, neste texto reinterpretado, levam-me de volta para um lugar da memória que eu já nem recordava mais, ou trazem--me à tona um filme que eu nunca filmei mas que já me passou pela cabeça, desperto ou a sonhar, olhar esta imagem, indagar.

 

© Carpinteiro de Poesia

 

Praia de Ajuruteua, 13 de Novembro de 2021

 


 

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