Um livro cru, pesado,
violento, entretanto, romântico e erótico, sem descurar de uma aflorada
sensibilidade poética a olhar e refletir o tecido social com o qual o autor se
relaciona.
Lançado pela Editora Patuá
(2023), “Entre escorpiões” é o segundo livro de Diego Wayne (DW).
O primeiro foi “Coração
de Unicórnio” (Rico Editora, 2018).
Nesse período, ele
amadureceu a intensa experiência da juventude através da escrita poética.
Ao mesmo tempo,
concentrou-se nas aulas que ministra em Curuçá, Pará.
E publicou textos em
revistas, sites e coletâneas literárias.
Diego Wayne reuniu os
primeiros escritos – alguns dos quais declamava entre amigos e culturais
públicas – numa obra marcada por forte relação de identidades com a sua
homossexualidade.
A partir destas primeiras
experiências, um poeta-menine construiu versos de uma lúdica e delicada pureza
apolínea na qual o corpo representa a perfeita harmonia existencial.
Desta
infância apaixonada pelo cheiro do mato e pelas gotas da chuva em terras
demarcadas por metáforas, sentia que um dia a sua poesia saltaria para fora de
seus sonhos como uma fantasia que se realiza à revelia dos desejos.
Quando lemos um poeta com
ele sentimos e maturamos em nós as suas dores, comungamos suas vicissitudes, sentamos
à mesa de seus convivas, afundamos nos limbos das noites medonhas em que
infernos se manifestam como realidades mal vividas, vícios, vômitos.
No livro “Entre
escorpiões”, o poeta é um profeta que protesta contra o estado de coisas,
escreve na carne e com a tinta de seu próprio sangue.
A matéria do poema é o
espírito, absoluto, abstrato, subjetivo, livre, que grafa, como símbolo,
representa, mas não traduz o que habita a alma poética, cujos conflitos estão
presentes em toda a história da literatura, que se move através deles, desde
Homero aos nossos contemporâneos.
Onde
a carne pulsa uma alma que arde um amor sem fim, o poema tem uma pureza, quase
uma castidade entre versos realistas que se misturam ao desabafo de uma
narração linear ultra-romântica em busca do essencial humano.
O
poeta sente a sua alma estilhaçada, com uma estilística que capricha por
dilacerar as palavras de tal forma que alguns sintagmas se constituem em
pequenas partículas atômicas que compõem os planetas do universo.
Cansado
dos fatos e de temas cotidianos, redes sociais e programas que ditam
comportamentos, DW resiste contra bolhas que se sobrepõem umas às outras.
A
desilusão é uma sombra que se plasma a volta do poeta num mundo em decadência,
ao qual ele indaga e nega.
Entre
um poema e outro, DW emerge como um deus sedento de amor e sexo para libertar
estes tempos sombrios, com versos angustiados sobre a banalidade com a qual a
humanidade se trata a si própria, violentando-se.
O
poeta acusa e recusa a solidão, mas desta faz o mote de sua poesia, através da
qual dialoga com um tempo que lhe é insustentável.
E
os excessos do tempo insensível se espelham na crueldade dos versos do poeta, que
expulsa o mal que o consome numa soma de perdas e ausências que estruturam esta
sociedade derrotada por si mesma.
A
escrita de DW compara atos e conceitos contraditórios, questiona os algozes da
humanidade, ao mesmo tempo que tensiona uma certa pulsão de amor e morte em
simultâneo, libertando-se o poeta do poema como num jogo de roleta russa.
O
poeta se arma para ferir até à morte com rompantes de um amante que grita a dor
de um amor distante, como uma licença poética para versos livres que não se
alinham de forma rítmica nem métrica ou melódica.
“Entre
escorpiões” é um livro que se abre reflexivo quanto à decadência de uma
existência humana, tornando-se de seguida um livro sensual.
Começa
com versos críticos de caráter realista sobre o atual estado de coisas num tempo
caótico que inverte o sentido ético e filosofal da existência.
O
poeta trafega estas zonas escuras de numa sociedade desalmada que se maltrata
com preconceitos e saberes soberbos.
O
livro surpreende com aforismos dispersos que colocam em suspensão os conflitos
que emergem dos dramas anunciados pelo autor.
Num
estilo que insinua uma conquista, uma dança inacabada, um mistério, versos
desabafam com uma simplicidade narrativa como numa conversa entre amigos
cúmplices.
São
versos que deixam transparecer corpos imaginados por um real fantasiado, não
sendo um espaço físico, mas psicológico, construído na experiência e na memória
de uma existência poética que se revela ao mundo como um espelho do próprio
amor.
Diversas
imagens simbólicas do livro são portais que se abrem para novos territórios e
significados que permitem que o leitor não se prenda às alegorias de um poeta
cujos versos são críticos, políticos, eróticos, sarcásticos, sádicos,
masoquistas.
O
lugar de fala do poeta é de um amante que têm desejos profundos que nem sempre
se realizam.
Versos
realistas expõem uma vida a dois na sua cordial simplicidade, afeto e sexo, em
cenários íntimos onde toques e olhares extravasam pulsantes orgasmos sob luas
distantes.
Entre
pureza e devassidão, a sublime potência sexual e a espiritualidade, DW canta o
amor que o esmaga, um amor visceral, seus versos se tornam a própria pulsão de
um prazer que se violenta com o ódio social.
Em
nome do amor da carne e das feridas que sangram um coração fragilizado, o
poeta-lunar deambula sua escrita em metáforas afiadas como lâminas
dilacerantes, cujas mensagens cortantes e ferinas são dedicadas ao objeto de
desejo.
O
poeta sonha o amor que lhe escapa ao mesmo tempo que o retém nos desejos de um
bicho racional domesticado pelo prazer e pelo desejo sexual, ao qual se entrega
com coragem e dessa forma seduz o leitor.
Esta
transubstanciação do corpo no espírito do poeta faz com que seus versos revelem
um tipo de erotismo espirituoso fundado na pureza de um amor verdadeiro e contaminado
pelo real que o esmaga, dilacera e debica suas vísceras
O poeta grita contra a realidade opressora que
o espanca até que a carne se torne mundana como um amante platônico que sente
prazer com seu parceiro, mas apenas no campo das ideias.
É
um diálogo que nos
afoga na primeira frase, mas que também nos afaga nas suas bordas mais
sensíveis, com o autor se utilizando da palavra como verbo para traduzir e
comunicar o que diz sua voz interior sobre temas como amor, ódio, deus, morte,
poder, eros, tanatos.
Há livros que são como numa bússola
para navegação enquanto outros a própria perdição no sentido contrário às rotas
pré-estabelecidas através das quais nem sempre chegamos aos nossos destinos.
As páginas desta obra poética evoluem
desde uma existência noturna para um amor solar projetado, ao qual basta olhar
para sentir-se extasiado, impregnado de um instinto primitivo que não
se relaciona com a matéria em si.
“Entre escorpiões” é o extremismo,
a apelação e a necessidade extravagante do amor, onde a ideia de amor/paixão se
traduz pela manifestação de um sentimento denso.
Sendo paradoxal o desejo
e o afeto entre os amantes, pode-se dizer até patológico, dualista, não
sobrevive sem o objeto do amor, pressupõe um ideal de par, impossível.
Apesar de pertencer ao instinto
humano, este sentimento transcende a própria existência, superando-a, além da
natureza material, como um deus intocável e indeterminado pelo destino.
É um sentimento que traduz o estado
da alma de um Ser diante da natureza e sugere um tipo de idealismo amoroso
associado ao pessimismo, à tragédia, à dor, à morte.
A
poesia de DW não é um lugar para onde se vai, mas do qual não se retorna.
É
uma estrada sem pegadas que conduz o poeta pelas trilhas de um caminho sem
volta para um território que não se revela em mapas do destino.
É
um labirinto que se entra para se perder à própria sorte.
©
CARPINTEIRO DE POESIA
Bragança
do Pará, 7 de Março de 2023
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Autodenominado Carpinteiro de Poesia, Francisco Weyl é poeta, ensaísta, documentarista,
jornalista e professor. Mestre em Artes e pósgraduado em Semiótica (UFPA),
criou o FICCA – Festival Internacional de Cinema do Caeté.
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