O cenário cultural brasileiro vive uma contradição profunda. Após décadas de luta por políticas públicas de cultura e pela institucionalização de editais de fomento, esperava-se um ambiente mais democrático e acessível. No entanto, o que se vê, na prática, é a reprodução de lógicas excludentes, onde os mesmos grupos historicamente privilegiados continuam sendo beneficiados, muitas vezes por meio de relações pessoais, alianças políticas locais e articulações de bastidores que transformam os editais em instrumentos de manutenção de poder — e não de redistribuição simbólica ou econômica.
No Pará, essa realidade se intensifica. O estado vive um cenário de disputas constantes na política e na cultura, marcado por circuitos institucionais de grupos privilegiados, currais culturais em municípios e clientelismos disfarçados de meritocracia. Em vez de promover diversidade e descentralização, os editais frequentemente legitimam um sistema de favorecimentos que exclui projetos coletivos, independentes e territorializados, especialmente os que nascem fora das capitais ou dos grupos alinhados aos centros de decisão.
É nesse contexto que o FICCA – Festival Internacional de Cinema do Caeté se afirma como uma trincheira de resistência cultural e coerência política. O festival nasce e se fortalece à revelia dessas estruturas de exclusão. Sem depender dos grandes circuitos de financiamento, o FICCA constrói sua potência na base, na colaboração entre artistas, nas comunidades do Caeté, na escuta dos territórios, e na crença de que a cultura não precisa se submeter a jogos de poder para existir com dignidade.
A posição do FICCA é clara: respeita quem conquista espaços institucionais, reconhece o valor das leis e das políticas públicas, mas mantém um olhar crítico e desconfiado sobre os usos e distorções desses mesmos mecanismos. Pois quando as políticas culturais passam a reproduzir os mesmos vícios da velha política — trocas de favores, panelinhas, elitismo e exclusão — deixam de ser emancipadoras e passam a servir como ferramentas de retrocesso.
Neste cenário, a resiliência do FICCA é resistência e guerrilha simbólica. É coerência radical. É a prática cotidiana de fazer cultura como enfrentamento e construção de autonomia. O festival mostra que é possível existir e persistir sem se submeter, criando brechas, redes e territórios livres em meio ao sufocamento institucional.
O FICCA é um festival de cinema, um ato de insurgência cultural contra um sistema que se moderniza por fora, mas segue arcaico por dentro. É a prova de que a cultura viva, crítica e territorializada ainda encontra formas de escapar dos filtros do privilégio — e de fazer da arte um instrumento de verdade, enfrentamento e transformação.
Belém do Pará, 10 de Abril de 2025
FRANCISCO WEYL, CARPINTEIRO DE POESIA
Criador, Diretor, Curador do FICCA
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