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Só os “rabelados” fazem cinema em Cabo Verde

"Rabelados”. Já ouvira falar nesta palavra antes, quando ministrava aulas no Piaget, sem, entretanto, avançar nas pesquisas que se faziam necessárias, porque naquela altura (há cerca de sete anos) priorizara outros temas e ações.
A palavra, entretanto, ficou-se-me.
De volta a Cabo Verde na condição de convidado do #PLATEAU – Festival Internacional de Cinema de Cabo Verde, assisti ao filme “Revolução dos Rabelados”, de Mário Benvindo.
Ele não obteve nenhum prêmio, mas só o fato dele ter estado inscrito já revela a sua vitória e a sua conquista.
O filme, segundo se sabe, esteve no Festival Itinerante da Língua Portuguesa (FESTin) e Cine’Eco (Portugal), Bage da Fronteira (Brasil) e Kugamo (Moçambique).
Mário Benvindo é um jovem realizador cabo-verdiano ao qual eu já havia esboçado crítica, mas a outro documentário, sobre a Cidade Velha, há sete anos (“Rua Banana”). Ele também fez outro documentário, “Areias da Morte” (2013).
Há qualquer coisa de Palmares nos “rabelados”, porque ainda nos dias de hoje eles resistem.
O filme de Mário Benvindo, entretanto, mostra as mutações pelas quais passa esta comunidade, em Espinho, Santiago, Cabo Verde.
documentário de Mário Benvindo tem esta força Histórica de nos rebelar diante destas contradições.
O realizador levou três anos para realizar a obra, de 26 minutos, tempo em que ele sintetiza a transformação da comunidade de Espinho Branco, Santiago.
E ele passou pela prova da desconfiança da comunidade, sem levar câmara para filmar, criando relações afetivas, até que finalmente conseguiu filmar depoimentos diversos e registrar tradições como a ladainha.
Nesse tempo, percebeu o que chama de revolução, porque os jovens reagem aos ensinamentos dos mais velhos, hoje, sendo registrados em cartórios, frequentando escolas fora da comunidade, recebendo assistência hospitalar quando necessitam.
Ou seja, os jovens agora fazem coisas anteriormente inimagináveis para os “rabelados”, que chegaram muitas vezes a ser ridicularizados e perseguidos pela opção que fizeram de isolamento.
 Cena do filme "Revolução dos Rabelados", de Mário Benvindo

Mário Benvindo testemunhou ainda a inversão de valores com relação às mulheres, que adquiriram autonomia no sistema produtivo, num verdadeira reviravolta socioeconômica.
Mas a pesca, a agricultura e o artesanato continuam sendo a principal forma de subsistência da comunidade.
Pela arte, aliás, os “rabelados” têm sido “revelados” ao mundo, com obras de arte, documentários e mesmo músicas.
A circulação destes produtos chama a atenção do mundo para esta pequena comunidade.
Sem tomar partidos, entretanto, e dentro de uma perspectiva antropológica, o realizador Mário Benvindo deixa que a voz dos mais velhos e do novo chefe do grupo se manifeste.
E estas vozes traduzem a tradição e o fundamentalismo milenar ao qual se apegaram, mas que foram importantes para que se mantivessem a margem dos processos republicanos e da independência do país.
E aqui pensamos nós reside o grande poder deste documentário, dar vozes a estas vozes.
Não existe uma narrativa em si, mas falas, tradições, oralidades.
O tema é pertinente. A imagem fala e a câmera a enquadra.
O filme é muito bem tratado, e com planos e sons tecnicamente perfeitos, irretocáveis.
Eu não o faria melhor, de certeza, mas se cada um ser humano tem o seu próprio olhar, juntando-se ao olhar que conferi ao seu filme sobre a Cidade Velha (“Rua da Banana” - 2007), ouso afirmar que o realizador Mário Benvindo maturou os seus fundamentos, tornando-os mais complexos, apesar de seu jeito simples de ser e de filmar.
E o que poderia parecer monótono, como as entrevistas quando conduzidas como reportagem, fica bem interessante, com as “quebras” entrecortadas de planos nos conflitos entre as falas que afirmam o novo e/ou o velho discurso.
O realizador estabelece um diálogo com a sua montagem como se os “falantes” estivessem numa roda, quando na verdade os depoimentos foram captados em dias e locais diferentes.
Isso torna dinâmico o documentário, e assistimos paulatinamente a diversas cenas em que as mulheres se destacam, inclusive com a presença da artista Mizá, uma das pessoas que foi responsável pela abertura dos “rabelados” para o mundo.
E vice-versa.

Maria de Jesus, primeira mulher "rabelada" a se formar (Contabilidade)
e sua madrinha, a artista caboverdiana Mizá 

As voltas que este mundo dá, eis-me cá outra vez a comentar sobre este realizador (Mário Cabral), ou melhor, a aproveitar-me de sua obra para fazer crítica política de arte.
Mas reconheço que na verdade foi Charles Akibodé, em uma conversa particular, entre amigos, uma noite, à mesa com realizadores e produtores presentes no Festival Plateau que me revelou os “Rabelados”.
Literalmente, e sem trocadilhos, a origem etimológica e a travessia linguística da expressão “rabelado” já me chamara a atenção, desde quando não me interessara em aprofundar a pesquisa.
O que eu sabia desta História eram a partir destas referências orais e cinematográficas com as quais me alimentara.
Mas, sempre suspeitara que, apesar de que a tradução social do termo “rabelado” nos levasse a “rebelado”, entretanto, “rabelado” vem de “revelado”.
Poeta que sou, apaixonado pelas palavras, gosto de estuda-las e também de brincar com estas, desmontando-as, em busca de novos sentidos e significados.
Ao serem tido como rebelados e revoltosos, suas ações foram tidas como confronto ao próprio Estado Novo que se sustentava na Igreja, pela via do qual transmitia suas mensagens “espirituais”.
Os “rabelados” são um espinho, portanto, na garganta da contemporaneidade. E por isso mesmo são ostracizados das relações sociais.
Tudo começou com a chegada de novos padres portugueses chegaram a Cabo Verde. E o país estava há cerca de 20 anos sem padres e as funções sacerdotais em muitas comunidades eram exercidas por leigos, que celebravam missas, matrimônios e batismos.
Ora, se a Igreja nem chegava aos seus fiéis nas Colônias, imaginem-se os rincões mais distantes naquela época.
E quando novos Padres introduzem as batinas brancas algumas comunidades se rebelam, refugiando-se em comunidades ainda mais distantes onde passaram a praticar suas próprias tradições litúrgicas.
E assim eles preferem cultos sagrados à pós-modernidade, andam a pé e não de carro, habitam casas são de terra batida, não veem televisão nem escutam rádio, atuam na pesca, agricultura e no artesanato, e jejuam sem trabalhar, aos sábados.

Júlio Silvão, Nelson Alves e Mário Benvindo 
A linha de frente do cinema de Cabo Verde

O interessante deste processo histórico entre outras coisas é que os “rabelados” criaram um Estado paralelo, inclusive, com os mais antigos a dizer que haviam recebido revelações espirituais para se opor as mudanças da Igreja, a qual era considerada corrupta.
Mas, sem conseguir articular as suas falas ao conjunto da sociedade, entendeu-se que os conflitos eram políticos quando eram religiosos.
Ou seja, ao reagir à Igreja, reagiam também, ao próprio Estado fascista de Salazar, pelo que foram perseguidos e reprimidos.
E nem a Independência de Cabo Verde os trouxe de volta ao meio social.
E ainda hoje não se entende muito bem o que os “rabelados” são.
Há teses e pesquisas, colóquios, fundamentos, mas poucos como Mário Benvindo e Mizá foram lá levar a sua arte e a sua solidariedade.
Os chefes ainda ocupam nas comunidades praticamente as mesmas funções dos alcaides árabes, podendo resolver desde conflitos familiares até os de natureza política, de decisões pessoais, de respeito as normas internas da ancestralidade, as questões de comportamento e de relações com as demais pessoas de outras comunidades que não as “rabeladas”.
Os “rabelados” criaram mecanismos de auto sustentabilidade, desenvolvendo formas pedagógicas próprias para transmitir conhecimentos, afirmando a língua materna e sedimentando conceitos estranhos á modernidade.
No próximo ano Cabo Verde comemora 555 anos de descobrimento, 40 de Independência.
Que Oxalá o revele sempre rebelado.


© Carpinteiro

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