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Para pensar-fazer o cinema na Amazônia (Por Carpinteiro de Poesia)

 


O cinema é a arte do silêncio e da síntese, a arte do tempo e da comunhão.

A arte cinematográfica é uma ferramenta educativa que nos faz repensar as práxis sociais.

Um instrumento pedagógico que é também arma de guerra e de propaganda, sendo capaz de construir ou de destruir, formar e de-formar civilizações.

O cinema opera no inconsciente de quem assiste a um filme, pelo processo de fragmentação/justaposição das imagens (fotogramas), produz no cérebro a ilusão do movimento.

Quando praticamos cinema, portanto, operamos com uma linguagem artística, cujos signos afetam o inconsciente e o imaginário das comunidades, com as quais nos relacionamos enquanto pesquisador/realizador.

E as projeções tornam-se num palco de vivências, cujas reais experiências são afetadas por imagens ficcionais.

O resultado desta simbiose catártica são diversas relações de identidades entre a comunidade e as obras cinematográficas que produzem e/ou assistem, quando estas lhes são projetadas.

Mas os fenômenos culturais não sucedem por decreto ou por vontade de indivíduos.

Eles resultam de lutas históricas e se processam de forma dialética, no interior das sociedades, no imaginário, nas práxis e nas relações entre nações, grupos e indivíduos.

 

(...)

 

Palco de contradições sociais, a Amazônia tem sido plateau de diversas produções cinematográficas, muitas das quais mediatizadas pela indústria cultural, e, outras, por esta renegada.

Fazer um filme ou um festival de cinema na Amazônia pode render dividendos a empresas de olho nas vantagens disponíveis para quem agrega valor ao produto de mercado, com o meio ambiente e a floresta.

Há muitos olhares sobre a Amazônia, entretanto, a maioria destes olhares parte de fora para dentro, sendo, o mais danoso, aquele que vê o homem da floresta como um personagem de ficção romântica, a ser protegido pela civilização

Ou seja: um selvagem ainda em estado de pureza e em contato permanente com a natureza que carece da intervenção externa para sobreviver.

E se o nosso estado de arte é mítico, há que preservar a essência da vida que pulsa no homem da floresta.

A floresta é a expressão viva da natureza, um bio-espaço, no qual e através do qual é construída a psico-sociedade humana.

Mas há que se reconstruir o imaginário do homem Amazônida que tem fome e sede de arte.

E aqui parafraseio o grande Glauber Rocha: Nem a Amazônia comunica a sua miséria ao homem civilizado, nem o homem civilizado compreende verdadeiramente a miséria do homem amazônida.

Há muito que os realizadores de cinema amazônida falam sem que sejam ouvidos.

Há muito que os realizadores de cinema amazônida criam obras sem que seus filmes sejam vistos.

É a nova forma de apartheid: aqui chegam as boas intenções, não os recursos financeiros, ouvimos os discursos, não respeitam nosso lugar de fala.

Nem a Amazônia se (re)conhece e nem a Amazônia consegue comunicar a sua diversidade criadora aquém ou além de suas fronteiras.

Mas, se a Amazônia não (se) “comunica” não é porque ela não sabe comunicar, mas porque ela produz formas diferentes e diversas de comunicação e arte.

Ainda que algumas vezes incorporadas pelas normas culturais, estas falas originais são desqualificadas na matriz daqueles que a produzem e criam, ou seja, o trabalhador rural, a parteira, o pajé, o ribeirinho, o extrativista, a mulher quilombola, o cidadão periférico.

Há que se reconhecer, portanto, o direito dos povos amazônicos refletirem por si próprios sobre a sua própria realidade.

O homem amazônida, alienado, morre à fome, sem educação, saúde e trabalho.

O homem amazônida é um filosofo faminto: vê diante de si a sua fecunda riqueza, mas não tem forças para usar seus braços artísticos e intelectuais para transformar a natureza das coisas.

O homem amazônida trabalha: é um escravo do patronato cultural, imposto pelo mercado global, representado por um modo brasiliano inspirado no modelo americano.

Nós, amazônidas, sabemos muito bem o quanto é sacrificante afirmar e preservar tradições contra discursos e práticas pressupostamente híbridos, que silenciam as produções artísticas e culturais das comunidades periféricas.

É, pois, um massacre físico e ao mesmo tempo intelectual contra a Amazônia.

Este massacre é escrito por entre linhas acadêmicas, fortalecido pela mídia, e financiado por um ciclo industrial cultural, que invisibiliza a produção intelectual da Região.

É necessário atravessar esta ponte: aprofundar e difundir tanto o pensamento teórico quanto as práticas vivenciadas nesta estratégica Região, relacionando-as em busca de pontos convergentes caracterizados por práxis reais.

Este desejo de resistência catarsea a consciência amazônida, e assume um postulado histórico para a Região.

 

(...)

 

Na contracorrente, realizadores e produtores, professores e pesquisadores, independentes ou vinculados a instituições ou organizações da sociedade civil, têm desenvolvido projetos educativos e sociais, em escolas e redes de cineclubes, e comunidades, onde as redes de colaboração coletiva tem se tornado fábricas de experiências e poéticas audiovisuais, de forma invisível e/ou invisibilizados.

Mas, dialogar a partir da Amazônia é coisa que poucos fazem, e quando o fazem, a produção de idéias se dispersa em eventos pontuais, sem que as comunidades obtenham para si o retorno intelectual de tais encontros.

 

Finalmente, elenco algumas questões que me pergunto:

 

Como avançar com práxis radicais por sob a égide do sistema que afinal, ele próprio, nos financia?

Sob quais signos trocar estéticas & poéticas (entre nós próprios e com a comunidade) se estas trocas também podem ser moedas de troca para o mercado?

Que territórios podemos mapear, sem que estes mapas sejam catalogados pelos vendilhões do templo (se é que estão me entendendo)?

 

Uma nova civilização estética não pode esperar.

Mãos à obra!

 

 

Francisco Weyl

Praia de Ajuruteua, Bragança do Pará, 15 de Dezembro de 2021


 

FOTO: Mariana Figueroa

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