O conflito gerado pela possibilidade de construção de um porto graneleiro da empresa norte americana Cargil em território do Programa de Assentamento Agro-Extrativista Santo Afonso, na Ilha do Xingu, Município de Abaetetuba, é o mote de um documentário que parte do ponto de vista de pescadoras e pescadores, extrativistas, ribeirinhos, trabalhadoras e trabalhadores rurais, para narrar os conflitos e perigos aos quais estão submetidas as comunidades locais na Amazônia Paraense.
Ainda sem título definido, o DOC é um combate, demonstra a
incidência tanto mediática quanto ideológica, contra a grilagem, inimigo que se
molda de acordo com o interesse e se fortalece através dos diversos projetos de
instalação de empreendimentos para a Amazônia, com a narrativa do progresso e
opera de forma subliminar estratégias jurídicas e institucionais
burocratizantes, que dificultam e/ou excluem o acesso aos direitos da e pela
comunidade.
Como essas comunidades tradicionais se organizam e como
lutam para conquistar acesso e permanência à terra, os impactos ambientais e
sociais causados pela construção do porto, os estranhos processos e títulos de
“aquisição” da propriedade, característicos da grilagem de terras na Amazônia,
constituem alguns dos perigos deste porto graneleiro de uso privado, sendo que
as comunidades ainda são usurpadas com a construção de cercas que ultrapassam
os limites da terra que
a Cargil declara ser detentora, numa forma de violentar a
ancestralidade, o direito subjetivo, e a cultura simbólica de um saber que
somente possui quem vive do seu trabalho, na terra ou no rio, como as cerca de
188 famílias que vivem numa área de 2.705,6259 hectares do Programa de
Assentamento Agro-Extrativista Santo Afonso, na Ilha do Xingu, Abaetetuba.
O DOC pretende sensibilizar o público, contrapor o projeto
privatista a um mundo coletivo, ancestral, de conhecimentos e saberes próprios,
ameaçado de desaparecer na comunidade do PAE Santo Afonso, visitada pela equipe
de filmagens, no Xingu, Piriteua, Vilar, Areia, Curupuacá, São José, Piri, e
Capim, onde foram ouvidas dezenas de lideranças e pessoas da comunidade, tendo
estes deslocamentos resultado em rodas de conversas locais que tanto fortalecem
a luta social quanto amplificam a Ação Civil Pública promovida pela CARITAS
Regional Norte II, contra a Cargil.
1 Há cerca de vinte anos, Francisco Weyl desenvolve
formações audiovisuais que reforçam a esperança de crianças e jovens e
mulheres, em condições de vulnerabilidade de comunidades periféricas excluídas,
em populações urbanas e rurais, ribeirinhas, tradicionais e quilombolas da
Amazônia Paraense. Graduado em cinema, especialista em semiótica, mestre e
doutorando em artes, organizei o Concílio Artístico Luso-Brasileiro no qual foi
criado o Cineclube Amazonas Douro, com a presença de Zé do Caixão e Sério
Fernandes, Mestre de Cinema da Escola do porto, em Belém do Pará (2003). Com o
projeto Resistência Marajoara, venceu o prêmio Residências Estéticas em Pontos
de Cultura (Minc/Funarte-2009), quando atuou na formação de coletivos
audiovisuais de jovens em condições de vulnerabilidade (Soure, Marajó);
coordenou o INOVACINE-FAPESPA (hoje FIDESA), projeto de circulação e difusão de
obras audiovisuais no interior do Pará (Bragança, Tracuateua, Igarapé-Açú,
Altamira, Belém, Ananindeua, Santarém - 2010/2011); realizou o Festival
Internacional de Cinema Social (FEST-FISC), no âmbito do Fórum Social Mundial
(2009, Belém; e 2010, África); foi presidente e secretário-geral da Federação
Paraense de Cineclubes (2010/2011/2012); criou o FICCA – Festival Internacional
de Cinema do Caeté como projeto de inclusão e formação social e audiovisual em
2014; em seu percurso profissional e artístico, foi produtor, editor, e diretor
de programas na TV Cultura do Pará (1988/1996); e realizou dezenas de filmes em
diferentes formatos e gêneros, no Pará, Cabo Verde, e em Portugal, onde
ministrou aulas no ensino superior, produziu obras literárias e
cinematográficas, e venceu o Grande Prêmio Douro Film Festival (O Chapéu do
Metafísico, 2006).
“O ponto fulcral da da Ação Civil Pública é o de assegurar a
integralidade, vigência e eficácia da Portaria do INCRA que institui o Projeto
e reconhece o território (posse/propriedade) e a proteção jurídica do terra
pertencente aos povos e comunidades tradicionais que vivem na ilha do Xingu”,
afirmou na revista Carta Capital o advogado Paulo Sérgio Weyl, coordenador da
área de direitos humanos do escritório Weyl, Freitas, Kawage David, Vieira e
Botelho, responsável pela ACP, que tramita na 1ª Vara Federal Cível da SJPA sob
o Número 1043377-41.2021.4.01.3900 (O advogado, que será entrevistado pelo DOC,
também escreveu um texto em que esclarece detalhadamente a Ação, veja neste
link:
https://www.cartacapital.com.br/blogs/lado/o-ataque-do-governo-federal-aos-assentamentos-na-ilha-do-xingu-no-para/).
Desde a constituição da Aliança dos Povos da Floresta,
criada por Chico Mendes, que se desencadeia esta luta pelo reconhecimento aos
direitos materiais e modos de vida, do direito à terra por parte destes povos e
destas comunidades tradicionais e extrativistas, portanto, o Estado brasileiro
não pode entrar em retrocesso de direitos humanos, já assegurados no país e
fora dele. O modelo de desmonte de direitos e a construção da narrativa
mediática para minimizar o impacto social e ambiental do Porto emitidos pela
Cargil também serão desconstruídos pelo DOC, que está em fase de produção,
prevendo-se um projeto de entre 35 e 45 minutos, podendo ainda posteriormente
se transformar em série, a partir da riqueza das dezenas de depoimentos e
imagens capturadas pelo diretor de fotografia Marcelo Rodrigues, um dos quatro
integrantes da equipe, que conta também com o talentoso músico Cláudio
Figueiredo na criação da banda sonora, e o dedicado operador de áudio Luciano
Mourão, sob coordenação do realizador e professor de cinema Francisco Weyl,
sendo o DOC traduzido em libras e legendado em inglês e alemão - para
distribuição nos EUA, Canadá, Alemanha, e difusão e distribuição em redes e
plataformas colaborativas – para reverberar em outros canais possíveis (E se
opor a condição de invisibilidade à qual são remetidos os movimentos e as
causas sociais das comunidades tradicionais).
Financiada pelo Fundo Casa em parceria com a FASE Amazônia,
com apoio da WFK Direitos Humanos, Caritas Abaetetuba, Conselho das Associações
de Ribeirinhas e Ribeirinhos dos Programas de Assentamento Agro-Extrativistas
de Abaetetuba, Conselho Nacional das Populações Extrativistas, Comissão
Pastoral da Terra, e Festival Internacional de Cinema do Caeté, esta reduzida mas
valente equipe imersa neste projeto audiovisual é formada por pessoas
experientes em projetos sociais que despertam a formação de coletivos
audiovisuais na Amazônia Paraense, tendo a maioria das imagens deste DOC sido
captadas em áreas externas, durante o dia, de forma a mostrar o cotidiano das
famílias nas relações de trabalho, nas hortas, roças, e outras atividades que
revelam a força e as condições de trabalho delas. Na ação prática de campo
importou para o filme toda esta sensibilidade de imagens e sons - potentes e
até inquestionáveis - para mostrar (o) que os trabalhadores produzem, conforme
as suas necessidades e assim o fazem com vontade e de acordo com um tempo que
somente a sua natureza é capaz de definir e de sentir, mas o capital transacional
quer destruir. Usurpada no direito ao uso da terra, anteriormente conquistado
mediante acordos entre INCRA e SPU, reconhecidos por leis nacionais e
internacionais, a comunidade não foi consultada pela Cargil, que se utiliza de
métodos de convencimentos mediáticos para assediar a comunidade a aceitar a
construção do porto, com promessa de geração de emprego, seguidas de mensagens
que anulam a história, o saber, e a trajetória organizativa e cooperativa
comunitária local para conquistar o direito ao uso da terra, onde toda relação
entre homem e natureza se dá através da transmissão de conhecimentos que
respeitam e preservam o ambiente e não destroem a floresta. A empresa,
entretanto, produz estes processos para disfarçar os impactos ambientais e
sociais na Ilha do Xingu, particularmente no PAE Santo Afonso, sendo que suas
narrativas alcançam as diversas mídias e estratégias sociais, com o uso de
vídeos e cards em redes sociais, espaço na rádio da igreja local, e apoios
pontuais a organizações sociais com o intuito de dividir os movimentos sociais.
A comunidade sofre assédios, ameaças, ataques políticos,
esquemas cartoriais e jurídicos cujo objetivo é desmontar direitos
anteriormente conquistados, entretanto, é através das falas das lideranças e
das pessoas da comunidade, inclusive as ameaçadas, que o filme reconstituí a
história local para desmontar a narrativa jurídica dos advogados da Cargil,
segundo a qual: não foram cumpridos os termos de cooperação SPU-INCRA; a
comunidade não tem o título de posse do uso da terra; na área não existe a
população que a comunidade afirma ter; a comunidade não produz o que diz
produzir, razão porque a ideia deste DOC é mostrar que o que existe no PAE Sto
Afonso é uma antiga ocupação por uma população tradicional, beneficiada no âmbito
da Constituição Federal, e pela Convenção OIT-169 (Organização Internacional do
Trabalho), que também reconhece e protege comunidades indígenas e quilombolas,
e enquadra assentados na categoria de populações tradicionais, ainda que estas
sejam invisibilizadas, o que torna este filme um desafio, seja pela batalha
contra um inimigo poderoso que é o agronegócio, cujos interesses são
representados nestes processos jurídicos e mediáticos, seja porque estamos a
usar da única arma da qual dispomos que é o cinema social.
Praia de Ajuruteua, 31 de Março de 2022
© Francisco Weyl
Poeta, realizador, jornalista
Diretor da Arte Usina Caeté, produtora responsável pela
realização do Documentário
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