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(In)certas Memórias de uma Benquerença que vive na pena de Corisco

Antonio Maria Fonseca Pereira foi a primeira criança a nascer no Hospital Santo Antônio Maria Zaccaria, há 73 anos, em Bragança do Pará. Leitor voráz, interessado em história, filosofia, ciências, biografias, romances e poesia, começou escrevendo o que chamou de Nano Contos: Pequeníssimas histórias ou "coisas". Este trabalho serviu de base para poesias, contos e crônicas autorais, algumas reunidas na obra “(In)certas memórias”, lançada em 2022, pelo selo Populivros (Guigar Editorial).

Autodenominado “Corisco”, o narrador escreve sobre o território em que Antônio Maria nasceu e que ele chama de “Benquerença”, sendo este o lugar onde teriam ocorrido os causos contados e recontados na obra, em cujo texto assume a influência de poetas como Manuel de Barros, para quem 90% do que escreve é invenção e os restantes 10%, mentira.

Antonio Maria Fonseca Pereira (“Corisco”) é um daqueles raros escritores cuja primeira obra transcende as palavras impressas e se projeta nas ruas, nas praças e nas memórias de um povo. A grandiosidade de sua contribuição à literatura e à cultura de Bragança do Pará enraiza-se nas experiências e vivências que ele capturou com uma sensibilidade memorialística ímpar. Suas palavras se conectam à realidade local, preservando e ressignificando a história, e, ao mesmo tempo, alimentando uma poética que só os que caminham pelos becos e alamedas da bragantinidade podem entender plenamente. 

Contista ou memorialista, “Corisco” usou sua palavra para construir pontes entre o passado e o presente, e, talvez mais importante, entre o literário e o popular, assegurando que a voz da cidade fosse ouvida em suas múltiplas camadas. Revelada, a alma da sua Benquerença está no centro de seus textos, que expressam sua habilidade de entrelaçar histórias e pessoas. “Corisco” nos convida a ver e sentir Bragança através da história formal e por meio das relações afetivas que se constroem entre as pessoas e os lugares. A oralidade, um dos pilares centrais de sua produção, é uma linguagem viva, que ressoa na fala do povo, nas rodas de conversas, e que agora encontra seu eco nas páginas de seu livro. Carregada de conhecimento e de pesquisa, sua prosa histórica floresce na simplicidade e na conexão com o cotidiano e o contemporâneo.

Outrora campo isolado, a literatura é um espaço interativo, em que o público tem a oportunidade de construir, desconstruir e ressignificar mensagens, criando sua própria narrativa a partir do que lê, ouve e vê. Os novos sentidos da Literatura nas artes contemporâneas, e mesmo o processo interativo e decodificador das artes literárias, permite ao público construir e voar com suas próprias asas por sobre as narrativas, reinterpretando a mensagem proposta pelo autor.

A imaginação do público sobre o que lê-ouve-vê-pensa-sente é o limite deste fenômeno, que proporciona sensações frutíferas e prazerosas pela via das quais pode-se conhecer mais do mundo em que se vive e também sobre o ser humano em si próprio, que, desta forma, adquire mais conhecimentos e mais cultura, o que o fornece maior capacidade de diálogo e o prepara melhor para alcançar seus sonhos.

Entre as diversas artes e obras artísticas que se integram na tessitura das manifestações poéticas, literárias e culturais da cidade de Bragança do Pará, destacamos estas “(In)certas memórias”, assim como o autor da mesma, pelo seu compromisso com os processos criativos do pensamento, da ideia, da palavra falada e escrita, muito além das páginas de seu livro. 

Mas o exercício da leitura nem sempre se faz presente na vida das pessoas, e, do mesmo modo, a posição socioeconômica influencia demasiado o aprendizado e a leitura dos jovens, aos quais rareia repertório intelectual e cultural para decodificar símbolos e produzir pensamentos e interpretações críticas. E para além da ausência de público leitor e do déficit de leitura, a dificuldade do leitor em apreender, interpretar, e debater um texto é dos maiores desafios para os autores, que buscam alternativas para fazer chegar a sua mensagem a mais pessoas.

É nesse contexto que devemos reverenciar “Corisco”, pelo que ele escreveu e pela sua capacidade de fazer do ato de narrar um processo afetivo a partir de recordações que envolvem diversos atores sociais locais. O que “Corisco” propõe é uma experiência literária onde a leitura é um caminho para sentir a dialética da cidade. Além de relatar os fatos a partir de seu ponto de vista e de sua perspectiva existencial, que acrescenta pitadas éticas e irônicas aos acontecimentos narrados, “Corisco” é o mediador, o ponto de encontro entre o passado e o presente, entre o que foi vivido e o que está por vir.

Este comprometimento com a memória histórica da cidade é evidente, entretanto, o que realmente marca a trajetória de suas crônicas é um sentimento humanista que se manifesta na forma como ele trata os personagens de suas histórias – que não são meras figuras anônimas, pessoas reais, cujas vidas e lutas encontram ressonância em seu texto. Por isso, escrever uma crítica sobre Antonio Maria Fonseca Pereira (“Corisco”) significa reconhecer que suas “(In)certas memórias” pulsam com a vida da cidade. É, portanto, uma obra que se recusa a se fechar em si mesma e que, como a própria Bragança, continua em constante transformação.

Com uma escrita leve e provocativa, em crônicas que em média cabem em três páginas, Antonio Maria Fonseca Pereira (“Corisco”) nos desafia a olhar para nossa própria história com olhos renovados, a ver beleza na simplicidade, e a entender que a literatura, como ele tão bem demonstra, pode e deve ser um instrumento de preservação e de mudança. E por isso fazemos questão de reconhecer o papel deste contista, que fez da palavra um mapa cujo território demarcado é o seu lugar de fala e de sentimento, de paixão e de esperança, de memória, de reflexão e de transformação. 


Carpinteiro de Poesia Francisco Weyl


Grade, Arcos de Valdevez, 13 de Fevereiro de 2025



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