A estrada de Belém a Bragança se prolongava como se quisesse prolongar o tempo. Cada quilômetro se desenrolava entre matas densas e rios que se entrelaçavam como veias da terra, levando o olhar a vagar por águas barrentas e verdes que refletiam o céu em fragmentos de azul quebrado. O vento trazia odores de peixe fresco, folhas molhadas e maré, e nos ouvidos, um coro invisível de aves, sapos e insetos.
Nega Benedita, sentada ao centro do carro, parecia escutar e absorver tudo, transformando cada movimento da natureza em presença viva, cada som em memória ancestral. Não era apenas viagem, era prática poética, antropológica e pedagógica: cada instante reverberava com o estudo de campo que costumo registrar em minhas pesquisas sobre cinema comunitário na Amazônia, onde o território, a cultura e a memória se tornam atores do próprio filme da vida.
Mas antes da estrada, da poeira, do vento e do carro que transportava algo mais que madeira e pano, é preciso voltar à origem de Benedita, ao instante em que nasceu, na História dela própria e na minha cabeça, pelas mãos de Cuité Marambaia, quando a imaginação mistura ancestralidade, memória e pulsação coletiva.
Nega Benedita não é apenas boneca monumental; é presença viva. Ela respira ancestralidade e atravessa tempos. Cada traço, cor e dobra de pano carrega ecos da Boneca do Time Negra, que nos anos 1970 incendiava os carnavais de Bragança com o corpo negro elevado como estandarte de alegria e resistência. Carrega também a memória das mulheres negras da Amazônia que sustentaram comunidades inteiras com seus corpos, saberes e mãos. Benedita, mesmo imóvel, já é gesto: não ocupa espaço, abre espaço. Convida a tocar, olhar, filmar, dançar, reconhecer-se. Ensina que memória não é passado morto, mas presença que pulsa e respira com quem a observa.
Enquanto a estrada se tornava sinuosa, percebia como Benedita traduzia o espaço em linguagem de presença: mãos abertas, tecido colorido ondulando como bandeira, postura ereta. Roberta, ao ajustar cada pano, parecia tecer cuidado e respeito, gesto que era também estudo etnográfico sem palavra: o corpo expressa ética e memória. Eu, ao volante, sentia o peso do que transportávamos — não madeira, pano e cor, mas história viva atravessando quilômetros de Amazônia.
A viagem evocava minhas reflexões acadêmicas: cinema comunitário não é registro neutro; é prática de memória, construção de identidade e política de cuidado com o território. Nega Benedita opera nesse campo, atravessando corpos, escolas, ruas e câmeras, convocando cada pessoa a se reconhecer em ritual coletivo. Cada quilômetro percorrido se tornava laboratório, cada pausa para observar vilarejos ou conversar com moradores era aula de antropologia do cotidiano. Crianças correndo descalças, redes suspensas nas varandas, casas pintadas em cores vibrantes: tudo se tornava narrativa viva, experiência estética e pedagógica.
Em Bragança, Benedita foi acolhida com cuidado na casa de José Carlos Barroso. Barroso não é apenas professor; é guardião de memória viva. Suas mãos e palavras transformam arquivos em corrente de vida. Ele não preserva fatos, ativa narrativa: cada detalhe é contado, performado e compartilhado. A presença de Benedita se prolongava desde nossa casa no Jurunas, em Belém, até os corredores de Barroso em Bragança, nos relatos e registros que conduzia, levando-nos de volta às oficinas, como se através dela a memória do festival se erguesse em sua simbologia.
Benedita entrou no FICCA em 2014, permanecendo até a terceira edição. Quando retornou às oficinas do festival em agosto de 2025, encontrou terreno fértil para tornar-se corpo, gesto, presença e pedagogia. Entre os dias 18 e 21, percorremos dois territórios distintos: a Escola Lauro Barbosa dos Santos Cordeiro (Patal), em Augusto Corrêa, e a Escola José Alves, em Nova Olinda. Lugares separados por quilômetros, unidos pelo desejo de aprender, pela maré que cruza os rios e pela certeza de que a educação pode ser ritual, dança, performance e cortejo.
Nas oficinas do Patal, crianças exploravam o espaço como extensão de si mesmas. Barroso orientava, mas permitia que cada gesto fosse improvisação consciente, aprendizado vivo. Tocavam Benedita, dançavam ao redor, erguiam câmeras, riam e criavam narrativas refletidas no corpo da boneca. Cada risada ou improviso era memória performada. Em Nova Olinda, Penafort conduzia o gesto, combinando performance, dança, teatro e escuta sensível. Ângela mediava tempo e cuidado, garantindo que cada criança tivesse espaço para ser, olhar e criar. Benedita era catalisadora de presença expandida: corpo, memória e pedagogia em movimento, transformando a escola em ritual coletivo.
O cortejo das crianças em Nova Olinda estava marcado para 4 de setembro. Penafort havia imaginado que Benedita fosse atravessar as ruas, mas contratempos impediram que chegasse a tempo. Não foi descuido: imprevistos acontecem quando lidamos com presença expandida, territórios e ancestralidade. A potência de Benedita, porém, não se reduz a datas oficiais. Já desfilava em espírito, memória e corpo coletivo, ativando gesto, dança e câmera nas oficinas e ocupando a estrada em viagem ritual.
O território amazônico também falava por si. Cada pátio, sala de aula, rua estreita, manguezal, praia de rio ou ponte participava da narrativa. O espaço não era neutro; era memória encarnada, palco de cinema comunitário e ancestralidade. Benedita atravessava o território simbolicamente: convocava a memória das mulheres negras que sustentaram comunidades, eco da Boneca do Time Negra, resistência e alegria dos carnavais de Bragança, potência pedagógica de aprender circulando, tocando e filmando.
A viagem de Belém a Bragança, em 30 de agosto, transformou-se em cortejo ritual. Cada quilômetro, curva e parada se tornava momento de aprendizado. Benedita, sentada entre nós, amplificava percepção e memória. Roberta ajustava tecidos e cada gesto era ética e cuidado. A paisagem se expandia: manguezais refletindo o céu, rios correndo entre várzeas, vilarejos suspensos em palafitas. O canto de aves e sapos, o ruído do motor e do vento, o cheiro de peixe e terra molhada compunham partitura sensível e poética.
Em cada oficina, o aprendizado não se limitava a técnica de filmagem ou dança: era antropologia do corpo, memória e pedagogia decolonial. Cinema comunitário significa ativar presença, memória e território em simultâneo. Benedita funcionava como elo de ligação: corpo, ancestralidade, pedagogia e cinema. Ensinava que aprender não é acumular conhecimento, mas atravessar território, sentir o ritmo, ouvir o gesto e se reconhecer em memória compartilhada.
O cortejo do dia 4 de setembro, mesmo sem a presença física da boneca, foi repleto de potência. As crianças reproduziam gestos, danças e ritmos aprendidos, carregando corpo e memória de Benedita. Cada câmera erguida, cada improviso ou risada tornava a presença expandida, reforçando que memória e pedagogia circulam além do objeto físico. Benedita não é evento: é fluxo, processo, memória em movimento.
Sua pedagogia conecta-se à epistemologia decolonial: desloca centralidades, valoriza saberes locais, integra corpo, território e memória como campos de conhecimento legítimos. Cada oficina é laboratório, cada câmera gesto de documentação, cada dança improvisada prática de ética comunitária. A boneca media o aprendizado entre passado e presente, território e corpo, memória e cinema comunitário. Cada gesto das crianças compõe corpus de conhecimento vivo, integrando prática artística, pedagógica e acadêmica.
O território não é pano de fundo. É ativo, performativo. A estrada de Belém a Bragança, os pátios das escolas, as ruas de Nova Olinda, cada manguezal e rio são coautores da narrativa. Benedita atua como catalisadora: transforma geografia em gesto, espaço em memória, presença em aprendizagem. Sua pedagogia é performativa, corpórea, audiovisual e ancestral.
Quando refletimos sobre oficinas, viagens, cortejos e registros, percebemos que a boneca encarna múltiplas temporalidades: passado das mulheres negras, presente das crianças e professores, futuro de circulação de memória e pedagogia decolonial. Cada quilômetro, gesto e câmera é laboratório de experiência e registro acadêmico.
Ao revisitar imagens, vídeos e notas de campo, é possível perceber que Benedita desfilou muitas vezes: no Patal, em Nova Olinda, na estrada, em cada gesto das crianças, em cada registro audiovisual. Mesmo sem cortejo oficial, sua presença expandida ensinou, ativou memória e estabeleceu pedagogia viva.
O epílogo desta experiência reafirma princípios centrais: memória, circulação de arte, pedagogia e ancestralidade são inseparáveis; cinema comunitário e oficinas educativas são práticas de ética, cuidado e invenção coletiva; cada deslocamento físico ou simbólico ativa processos de aprendizado e criação. Benedita não é objeto estático: é presença que atravessa tempo, território e corpos, convocando todos a reconhecerem-se como participantes de narrativa compartilhada, memória viva e pedagogia em ação.
Carpinteiro de Poesia
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