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Addenda à Sapiência Cinestial

Assisti no Gato Vadio aos dois últimos filmes de Celestino Monteiro e Cintia Regala, “Sapiência Cinestial”, e “Addenda à Sapiência Cinestial”, mas não exatamente nesta mesma ordem.
Apresentados pela “Coágulos de Celulose Ultra-Congelados”, Addenda (2018) + Sapiência Cinestial (2017) foram projetados de forma invertida, ou seja, o “Addenda” passou antes, por ser mais recente.
E o “Sapiência” já havia tido sua estreia, mas eu não o havia visto.
Vê-los de uma só vez, penso eu, foi ainda melhor do que vê-los, em parte.
Eu explico.
Quero dizer, explico o que eu senti ao vê-los.
Ou tento explicar, para não confundir.
Mas, antes de escrever qualquer coisa sobre estes filmes, preciso declarar a emoção que é retomar a atividades artísticas e culturais, como estas sessões portuenses de filmes e de leituras de poemas.
E de como experienciar tais práticas alimenta e fortalece esta pobre alma!
Deu-me vontade de gritar ao final da projeção: Viva a Escola do Porto.
Os dois filmes compõem um projeto poético-audiovisual que Celestino e Cintia estão a realizar, em espaços abandonados da cidade do Porto.
E que, ao serem utilizados como plateau, tornando-se cenários insólitos, de uma plasticidade que confere ainda mais beleza às cenas captadas.
Os quadros têm a marca da Escola do Porto.
São fixos.
E demorados, fora dos padrões.
Capturados com som direto, desnudam os ruídos da realidade que atravessa a arte e é por esta atravessada.
Mas, mesmo quando este real - fora de campo (?) - invade a arte cinematográfica (e nestes caso, a poesia), ele se torna subtil, mesmo quando ele grita, o cinema silencia, mesmo quando ele fala, o poema não se cala.
A poesia, portanto, transcende-se nestes filmes (poéticos, por excelência), e acende uma chama que não vê, mas que queima aos que a escutam e a vem nas pinturas tradutoras das imagens projectadas.
As cenas, em si mesmas, e o que se passa no decorrer do tempo de captura das imagens delas, são a própria substância dos dois filmes.
Mas, não se passa muita coisa nas cenas, além da leitura de poemas.
E é exatamente esta não-muita-coisa o leitmotiv conceitual destes dois filmes.
O que é substancial está além dos quadros e dos próprios poemas, está, pois, em alguma cosia que já lá não mais está, mas que salta para fora da tela e penetra no coração e na mente do público, como uma flecha ou uma bala.
À primeira vista, podemos dizer que os filmes são de caráter experimental, mas isso é ilusório.
Porque não há nada de experimental nas cenas, antes, ao contrário, elas resultam de um trabalho, de uma imersão, de uma pesquisa antropológica, característica de quem se entrega e se integra ao espectro social em que vive, e faz, deste processo, uma simbiose artística.
Os textos apresentados pelos dois realizadores-atores-poetas-pintores foram por eles recolhidos de suas conversas pessoais, e de suas trocas de mensagens, virtuais.
E se transformam em poemas, declamados em casas abandonadas, na cidade do Porto, na qual estes dois artistas vivem e produzem.
Apesar da natureza social com a qual os realizadores caracterizam as suas duas obras, a denúncia dos despejos de áreas urbanas, e a transformação de moradias em hospedarias de turistas, os filmes adquirem uma dimensão menos real e mais simbólica, muito além do “real” declarado - e não alcançado, porque invisível -, revelando-se numa espécie de díade conceitual.
A narrativa dos dois filmes tem uma lógica poética, segundo a qual os dois artistas, em cena, representam seres que não tem nenhuma relação entre si.
O elemento masculino está de olhos vendados, e em silêncio, em todas as cenas.
Enquanto que o elemento feminino, de olhos bem abertos, declama com contornos poéticos os textos em prosa, que saíram de aplicativos e de redes virtuais - para o filme.
As cenas seguem um ritmo próprio, lento, de acordo com o tempo de leitura de cada texto, que também não tem nenhuma relação com o espaço em que elas ocorrem.
Enquanto a Mulher lê, manuseando e folheando as páginas onde os textos estão escritos, o Homem, de olhos vendados, a acompanha, virando, página a página, como se estivesse também a ver e a ler os textos.
É uma estranha coreografia corpórea, cujos gestos são desafinados, sem, entretanto, atrapalhar o andamento-cortejo desta dupla-orquestra.
Cena-a-cena, quadro-a-quadro, os dois filmes entram e saem de casas, quintais, quartos, escombros.
Num mesmo ritmo, que se move tão lentamente que não o percebemos sair do lugar.
As leituras nos prendem, e por elas, ficamos absortos nas cens.
Nestes filmes, há mais que poemas.
Além de imagens, além de sons, os filmes se nos retiram do espaço-simulacro que é a sua projeção e nos remetem para os escombros das casas abandonadas de nossos próprios pensamentos.
Excetuando-se uma cena exterior, num mercado, em que se podem ver o cotidiano das pessoas, todo o resto das cenas é filmado em interior.
Penso que a cena exterior literalmente adultera a linha narrativa do filme, que melhor se sustenta no vazio provocado pelos cenários das casas abandonadas.
A cena exterior quebra a unidade que compõe a força das cenas de interiores e que sustentam o conceito destes filmes.
Comparativamente, o segundo filme (“Addenda”), é superior ao primeiro, ainda que ambos se completem, e componham, os dois, uma única narrativa conceitual.
O “Adenda” de fato é a completude e até a sublimação da primeira “Sapiência”, apesar de que ela se dispersa no mercado, com a perda da razão de ser do próprio poema ali declamado, que deixa para trás a sua sacralidade, outrora esquecida num dos quartos, salas, quintais ou outros cenários pelos quais ele, o poema, ecoa e reverbera nas demais cenas dos dois filmes.
O poema falado nestes (outros) espaços se sustenta tanto pela força dos atores-realizadores em cena, quanto pelos enquadramentos das mesmas e das composições dos objetos reais que já lá estão, mas que – filmados – adquirem uma dimensão artística, e plástica, fascinante, pelo silêncio e solidão que evocam, e muito além dos poemas-falados.
O primeiro dos filmes realizados (a primeira “Sapiência”) tem planos mais alternados, com uma montagem que valoriza os detalhes de mãos a agarrar restos de comidas e micróbios, com as cenas de leituras de poemas.
Neste primeiro filme, pode-se observar uma espécie de apresentação da atriz-realizadora, que declama poemas, numa mise en scene nonsense clown, quando ela sobe as escadas de uma das casas abandonadas.
A dupla de realizadores construiu um trajeto fílmico conceitual, tendo como base a relação afetiva entre eles, transpondo o poema para o cinema, e a vida para a arte.
Considero-os admiráveis, porque nem os conheço, mas os sinto pelo que criam.

© Carpinteiro  Francisco Weyl
Porto, 7/11/2018











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