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As agulhas e linhas de minha Mãe e as contas de minhas guias

Toda vez que eu vou meter uma linha numa agulha eu me recordo de minha Mãe, Dona Josefa, e de quanto eu ficava feliz por ela me pedir que a ajudasse quando ia costurar à máquina, em cujo pedal eu também brincava, quando ela não estava a trabalhar. 
Talvez seja por isso que tenho uma fixação pela expressão bíblica de que é mais fácil um camelo passar num buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus. 
Minha sábia Mãe era uma pessoa cuja humildade era absoluta. 
Era também de uma paciência magnífica.
E falava baixinho, apenas o necessário.
Nestes dias, a fazer minhas guias, a passar com as linhas entre as contas, minha memória vai direto para a infância, e logo sinto a presença de mamãe, enquanto, em silêncio, medito e dialogo com ela.
Recordo as roupas que fazia, algumas reaproveitava, de irmãos mais velhos, ou de amigos que faziam doações.
Moça prendada do interior, tinha habilidades para trabalhos manuais e não abria mão de plantar hortaliças em pequenos espaços além de reaproveitar as coisas com uma capacidade milagrosa.
Eu me sentia um modelo, com aquelas peças de roupas estilosas, algumas feitas por ela, outras, herdadas de irmãs e irmãos, constituindo, desde a minha adolescência, uma leveza muito além do gênero, masculino ou feminino, no meu modo de vestir.
Já havia naquele momento alguma inclinação à liberdade, à arte, e ao desapego.
Mamãe não diz nada, ela só me olha, calada, mas está contente.
Seus olhos me falam que está tudo bem no astral.
Antônio Maria está na sua Missão de doutrinar os espíritos que precisam de Luz.
Professor Nonato já evoluiu para outras esferas de energias.
E o Pete alcançou patamares mais elevados na senda cósmica.
Papai está sempre com ela, mas, hoje, não veio, porque foi à praia de Ajuruteua, e apoiar uns jovens, em Bragança.
Ela me disse que depois da morte, papai passou a viajar mais que ela, que preferiu ficar mais em casa.
Perguntei da antiga máquina de costura com a qual eu sonhara quando soube do diagnóstico de câncer de Luan.
Ela disse que essa máquina nem em Museu mais cabe.
Que já não tem mais lugar para objetos como este.
Mas, Mãe, a Senhora quer que eu ajude com a agulha?
Quero, não, Chico, faz tuas contas, estão tão belas.

Carpinteiro de Poesia Francisco Weyl
Porto, 5/5/2019






Comentários

Joana Chagas disse…
Que riqueza de escrita, Carpinteiro! Suas lembranças também me remeteram às minhas nas quais minha também sábia mãe costurava por horas a fio e sim, também me pedia para enfiar a linha na agulha quando a visão lhe faltava. Gratidão por isto, querido!

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