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Lamento de um bandido pela morte de um poeta

Achei estranho quando o Nuno Rebocho apareceu à porta de uma das salas em que eu ministrava aulas na Universidade Jean Piaget, em Cabo Verde (2005).
Pedi licença aos alunos do curso de Comunicação, e me dirigi aquela criatura de estatura baixa, corpo redondo, óculos rebaixado, enquanto me olhava com aqueles olhos de poeta que logo me conquistaram.
Estava junto do Apolinário das Neves, e disse que desejava me fazer um convite, na altura, escrever ao jornal Liberal Online de Cabo Verde, começando-se a partir de então uma amizade sincera e profunda.
Pelas mãos do Nuno Rebocho, eu fui elevado à uma condição humana que apenas os nobres a desfrutam, além das palavras.
Além dos diálogos acompanhados de vinho, ele me trouxe a agradável esperança  diaspórica de um homem angustiado com o seu tempo.
De alma rebelde e punhos firmes, sua poesia desnudava a condição social humana pela via de uma História real que se transfigurava em seus versos.
Suas palavras eram armas e sua alma um recanto para errantes e desviantes, como este velho Carpinteiro tornado discípulo deste Mestre.
Assumi a qualidade de Publisher do O Liberal Online mesmo sendo declaradamente de esquerda, sendo o jornal de centro-direita.
Nuno me estimulava a destilar a crítica na essência e aceitou até mesmo que eu mantivesse um pseudônimo para textos mais radicais.
Recitamos poemas um para o outro, comungamos de narrativas cujos sonhos ainda são tão presentes em minha memória.
Memória desta terra que tanto amo e que sei o quanto por ela o Nuno era apaixonado, tendo habitado e produzido durante anos na cidade da Praia, Ilha de Santiago.
Cabo Verde perde um de seus grandes amantes.
Nuno estava acamado há dias, e já tinha consciência de que haveria de morrer no leito de um Hospital.
Estava com 75 anos de idade, tendo nascido em Mafra, Sintra, Portugal, onde trabalhou durante anos como jornalista e radialista.
Atuou em diversas redações desde 1963, tornando-se profissional a partir de 1974, assumindo diversos postos de comando na imprensa portuguesa, sendo que, em 1989, tornou-se radialista.
Combativo, de postura política definida, além da palavra e da poesia, tinha como arma a sua voz grave e uma vocação para propor e organizar cenas culturais, com o um talento carismático e uma autêntica liderança.
Quem desejar conhecer mais sobre a trajetória deste ser pode acessar os diversos sites de poesia ou adquirir alguns de seus livros.
A Segunda Vida de Djon de Nha Bia (Romance, 2010), e, de poesias: Breviário de João Crisóstomo (1965), Uagudugu (1994), O Onanista (1994), Um Poema a Lenine (1994), Manifesto (Pu)lítico (1995), Memórias de Paisagem (1996), A Invasão do Corpo (1997), Santo Apollinaire, meu santo (1997), Xblung Cascais (1997), A Nau da India (1999), A Arte de Matar (2001), Cantos Cantábricos (2002), Poemas do Calendário (2003), Manual de Boas Maneiras (2005), A Arte das Putas (2006).
Já nada esperamos desta vida além da puta da morte, mas quando  desaparece o corpo físico de um amigo, bem sabemos o que sentimos, esta dor que percorre o sangue e bomba as nossas artérias até explodir como um vulcão, o nosso coração.
A última vez que vi o Nuno Rebocho foi no ano de 2014, quando, a convite do Júlio Silvão, a altura presidente da Associação de Cinema e Audiovisual de Cabe Verde, convidou-me para acompanhar o primeiro Plateuau – Festival de Cinema da Praia.
Com a ideia era organizar um Festival de Cinema Etnográfico, nós, os três, chegamos a assinar um Acordo de Cooperação, entre a Associação, a Câmara Municipal da Cidade Velha, onde Nuno era assessor, e o Festival Internacional de Cinema do Caeté, que eu coordeno e que estava também na sua primeira edição.
O projeto não chegou a sair do papel a despeito dos esforços de Nuno em estabelecer uma conexão internacional entre a negritude amazônida e caboverdeana.
Depois, trocamos diversos e-mails, até que retornei ao Porto, ficando mais perto do Nuno, que afinal nem pode me encontrar quando eu estive em Lisboa, em 2018.
E, hoje, recebo a triste notícia de sua partida pelo amigo Silvão.
Não se deve dizer nada num momento destes, eu sei, pois que não há muito oque dizer, além de lamentar, desejar força aos familiares e pessoas mais próximas, e agradecer aos deuses pela passagem deste Ser iluminado em nossas vidas.
Gratidão, Nuno.

© Francisco Weyl






LAMENTO DE UM BANDIDO
que arma trago à bandoleira:
as balas de um poema
ou dores de uma bandeira?
que trago como alma: limites
de uma ilha
ou arame de uma fronteira?

pouco importa. que sou bandido e
a alma renasce no maquis
de honras que reacendo
com simples regras de viver aqui.
que bandido seja. ou bandeira do
solo sagrado onde nasci:

um chão livre e mais irmão
da boca húmida de liberdades
- que morre se compra a servidão,
não morre se cumpre tempestades.
um chão: é sempre uma pátria
ainda que pouca, ainda que mártir.

Nuno Rebocho

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