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O cotidiano como performance da invisibilidade no filme "João Parapeito"

João Parapeito”  [André Queiroz, 2024] é um filme que trata de um momento do João Parapeito, que seria um alter ego do ator Tiago Carvalho.

Seria um momento desse alter ego, um momento performático.

É um filme que, na sua linguagem cinematográfica, aborda a linguagem da performance.

É uma linguagem versando sobre a outra.

Como o cinema é a linguagem da imagem, o filme mostra, não a performance em si.

A performance do filme é a de ocultar a performance.

A performance enquanto uma representação.

O filme se debruça na existência do João Parapeito, que representa um trabalhador no seu cotidiano, que vem para um determinado espaço urbano, e vive a vida cotidiana de andar em trem, comer feijão com arroz, e ter esses momentos de solidão.

O filme também é bem interessante pela sua sonoridade e pela direção de fotografia, as câmeras são representativas e opressivas desses momentos em que o personagem está preso em si mesmo, como se estivesse sufocado.

O momento do personagem, de deslocamento, mostra alguns transeuntes, que seriam as pessoas invisíveis e invisibilizadas, que estão sempre presentes.

Muitas retornam como se fosse uma mesma história que se repetisse todos os dias, nas mesmas horas, com o mesmo menu, no mesmo horário do trem, com as mesmas pessoas.

Essa opressão é expressada pelas câmeras.

O filme mostra a performance fora do espaço da performance, onde a arte da performance é a própria existência.

Fora do espaço da performance, na medida em que demonstra, no espaço urbano, onde a performance sucede, demonstra o distanciamento e o estranhamento das pessoas com relação ao objeto performance.

Isso porque a natureza dessa representação evoca a morte.

Portanto, seria o próprio suicídio do João Parapeito.

É um ator, o personagem representa, enquanto o performance representa a própria morte.

Mas isso só fica evidente quase ao final do filme, quando vai se demonstrando que alguma coisa se passa ali, num único sinal, exatamente um sinal da cruz de um passante.

E os rostos que as pessoas olham, as expressões que elas utilizam para a performance, que estão do (outro) lado, não do ponto de vista da câmera, mas a câmera procura identificar esses transeuntes, inicialmente aleatoriamente e depois mais detalhadamente.

Esse detalhamento dos rostos das pessoas que passam e veem a perfomance da morte do outro lado da rua demarca o tempo dio filme.

Também a música, o filme tem esse som ambiente, permanente e essa repetição de deslocamentos e de processos, que é quebrado com o solfejo, com os assovios, que também se repetem.

Mas ao mesmo tempo que o áudio transmite tranquilidade, você percebe que ele já vai evocando uma melancolia.

Ainda que venha depois um canto de domínio público, e que belíssimos os arranjos do Jacinto Kawage, do Luiz Pardal, o canto da Andréa Pinheiro.

Se pensarmos também na realização da obra, todo o levante que se necessita para trabalharmos num sistema de produção, numa cidade como o Niterói.

Os deslocamentos, as burocracias, as questões de segurança de toda a equipe e das pessoas que participam, porque isso não é uma coisa simples.

Sendo um filme que tem muitas cenas abertas, com diversas pessoas que sequer sabem que estão a ser filmadas, é um cinema de tradição da verdade, torna mais verossimilhante o acontecimento, torna o personagem muito mais verdadeiro.

E isso é uma riqueza no filme.

O filme não mostra um estresse, mostra uma repetição.

E a música atenua, levando a essa melancolia, quando surge esta música, esta canção de domínio público, que evoca a Jandira e a Jurema.

Um canto também que remete para uma espiritualidade, a evocação de uma ancestralidade, como um retorno.

Aparentemente, a canção não tem uma relação direta com o personagem, que, ao menos visualmente, não utiliza-se de símbolos espirituosos ou espiritualizantes na sua jornada de personagem.

As evidências das visibilidades dos rostos invisíveis, alguns dos quais surgem ao longo do filme, são magnificamente qualificadas no final da obra, após a exposição do suicídio.

É quando o personagem desaparece na multidão, desaparece no meio daquele grupo, como um ser humano comum, que tem também o seu cotidiano, o seu dia a dia.

E que se confunde com o próprio João Parapeito e com o próprio personagem, que é o ator do filme, que é ele próprio.

E brincar com o jogo de máscaras de um cidadão e, ao mesmo tempo, o jogo de máscaras de um cidadão com a sua cidadania e com a sociedade, a partir do tema da morte.

É um jogo de expressões cotidianas, urbanas, e, ao mesmo tempo, uma provocação para um momento da nossa contemporaneidade em que diversas pessoas se deslocam de uma forma natural, de uma forma rotineira, para manter a sua sobrevivência.

Se reconhecem nesse caos social, mas, ao mesmo tempo, elas desaparecem.

O filme, quando joga nessa direção, utilizando-se da morte como uma evocação dessa poção que é a vita, que é esmagadora, é um filme de coragem, que se insere numa cinematografia aparentemente descompromissada enquanto cinema, mas que tematiza alguns elementos que, sem dúvida, estão fora do arco dos roteiros.

Estão fora do arco dos argumentos.

E, numa perspectiva política, também afirma o trabalhador, afirma a luta de classe.

Os ruídos de fundo, os áudios de fundo.

Percebe-se a pesquisa de fôlego do grupo, o quantitativo de pessoas e de instituições que estruturam o próprio projeto, sem descurar, claro, que é o essencial, a estética de um realizador, de um roteirista que é um filósofo, que é um pensador, motivo pelo qual comentar o filme é de muita responsabilidade.

Também, é claro, não podemos esquecer finalmente a montagem sigela, que se utiliza de microcortes, como micropartículas, como microefeitos que são eminentemente videográficos e que também remetem a um período da linguagem televisiva do final da década de 1970, quando também se tenta essa linguagem se apartar do próprio cinema.

O que torna ainda mais interessante o jogo de ir e de voltar.

E, ao mesmo tempo que tem ali, nessa dialética, um ponto de encontro, também um ponto de confronto.

É um filme de filósofo, é um filme de poeta e que não carece da filosofia para que seja abordado e também nem para que seja revelado.

Gostei, em linha geral, do filme.

Tem esse ponto de que coloca o público diante da sua própria condição, da sua própria condição humana.

Faz com que quem o assista se coloque diante dessa condição, se identifique, portanto, com essa condição de representar a própria morte e desaparecer na multidão.

 

 

Carpinteiro de Poesia

Lisboa, 05.11.2024

 


 

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