Odair Moreno Moniz continua a ser assassinado pela mídia nacional portuguesa, que abriu as gavetas de seu armário para inventariar os seus probemas com a Justiça.
O mesmo, entretanto, não foi feito com os agentes policiais que dispararam os três projétis que ceifaram a vida de um cidadão estrangeiro, negro e de origiem africana.
A versão da mídia corrobora a nota da Polícia para quem a vítima já estava previamente condenada, dado ao seu passado “negro”.
A sociedade consumidora de fatos e fake news assimila a notícia, polemizando-a.
Três tiros, na cabeça, no tórax, no abdómen.
Um homem negro embriagado foge de perseguição policial, bate em vários carros e sai de um veículo furtado com uma arma branca para cima dos agentes indefesos (?)
Odair tinha 43 anos, estava há 8 anos sem “problemas” com a Polícia, e, seus vizinhos informaram que ele era um homem trabalhador e tranquilo nas relações pessoais.
Havia sido julgado e cumprido penas por crimes de roubo, receptação e condução sob o efeito de álcool ou estupefacientes.
Ressocializado desde 2016, tornou-se empresário, dono e gerente de um café no bairro do Zambujal, Amadora.
Seguiram-se a este episódio uma série de atos políticos, ações diretas de enfrentamento ao racismo global estrutural.
Comunidades negras foram às ruas denunciar o caso de forma a conter este ódio que se espraia pelo planeta e que fere negros, mulheres, indígenes, imigrantes.
E a mídia como de costume criou narrativas para tornar violentos os que denunciaram a morte de Odair e justitificar o racismo que mata negros todos os dias.
Há um limite sobre a fronteira que a cidade constrói para aqueles que seguem vivendo sob olhares de fora, de estranhamento.
Já cá habitei por diversas vezes, sendo brasileiro, sinto na pele o tema sobre o qual escrevo.
Antropólogo retirante, andarilho, sou o que circula e vê um espaço onde, de alguma forma, já estive, por ter ouvido falar.
Resolvi caminhar até Cova da Moura.
Cova da Moura, nome pelo qual me apaixonei a primeira vez que ouvi, pela boca do Paulo Cabral, realizador caboverdeano que fez um documentário no bairro, sua diáspora.
Da minha casa, em Benfica, até a Cova da Moura, é uma caminhada de aproximadamente entre 30 e 35 minutos.
A rota é uma travessia para um território onde a política se faz presença, uma zona limítrofe da cidade “oficial”.
Um espaço que não cabe nas molduras da Lisboa turística, onde a identidade não é negociada, mas defendida.
E para pessoas como eu, que não conhecem o percurso, óbvio que essa caminhada se amplia um pouco mais, numa dimensão espacial, mas também simbólica.
Num caminho com elevações e pequenas curvas, passo por pequenos prédios com pessoas a fumar, oriento-me pela linha do comboio, até Damaia, e chego à Avenida 25 de Abril.
Pelas ruas íngremes, observo uma senhora a cuidar de plantas na janela, um casal a brincar com uma criança, um senhor de idade com compras de supermercado.
E, ao fundo, a escola professor Pedro D'Orey da Cunha, contorno, em direção à Cova da Moura.
Cova da Moura é onde Lisboa revela uma camada de si que muitos prefeririam esquecer, ou que só visitam com medo.
Há uma fortaleza invisível ao redor desse território, não para se proteger de quem entra, mas para proteger quem mora ali do abandono e da criminalização, da contínua marginalização.
A princípio, Cova da Moura seria um bairro social moderno, com a construção de casas econômicas, populares, e pequenos prédios a volta, de três andares, com um apartamentos de um e dois quartos.
É domingo, é comum sentir o vazio urbano, em qualquer lugar do mundo, mas essa realidade é subvertida, com diversas pessoas na rua.
Reverte-se a realidade no convívio principalmente das juventudes de diversas faixas etárias, meninos, miúdos, homens, raparigas, pessoas na rua, vão e voltam.
Uns a brincar na sua ingenuidade, outros a beber e a fumar à porta de suas casas.
Assim deixam-se a passar com o domingo, entre amigos, com uma cerveja, com uma boa conversa.
Mas este cotidiano é político.
São jovens que andam pelas ruas com a mesma vitalidade com que defendem a cultura que herdaram e construíram.
O volume dos sons são baixos, suportáveis.
A temática das músicas é essencialmente africana.
Malemolentes, intimistas e cosmopolitas, sintetizadas.
Mas não são sons de África de raiz, são sons de África pautada pela contemporaneidade.
Em Cova da Moura, a música, os sotaques, o crioulo cabo-verdiano ou guineense, as cores e bandeiras pintadas nos muros – tudo tem a função de marcar posição, de dizer: “Estamos aqui, e não vamos desaparecer.”
A pintura nas paredes é por onde a Cova da Moura também se coloca para fora, através desses grafites.
Estão nas paredes, são grafites que evocam uma arte de denúncia, uma arte comprometida, uma arte engajada, uma arte política, portanto.
É um lugar que se coloca para a sociedade através da sua arte, da arte da sua juventude, mas também em resistência – porque, para quem vê de fora, a Cova da Moura é um espaço-fantasma, uma sombra que “amedronta” pela diferença.
E nas paredes, o grafite é uma muralha de proteção contra o esquecimento.
É um lembrete de que os corpos pretos não estão no fundo da imagem e de que a história colonial e os ciclos de exploração ainda ecoam em cada esquina.
Eis a mensagem sincera de uma diáspora reclusa, encerrada num locus para se autoproteger.
Podemos falar que a Cova da Moura é um espaço “rabelado” em Portugal, que existe para afirmar uma cultura, para afirmar uma história, para afirmar um afeto, porque há um sistema de auto-proteção em que a comunidade se conhece, se auto-reconhece e, portanto, se auto-protege, se auto-valoriza.
Esse é o lugar da Cova da Moura, o lugar da auto-proteção, o lugar das ladeiras, onde nem todas descem para fora, algumas descem para dentro do próprio território.
As moradias populares são como fortalezas, onde as pessoas vivem e resistem, enquanto o poder público se ausenta.
Cova da Moura é marginalizada, alvo de estereótipos e do racismo sistêmico; para dentro, é lar e espaço de afirmação, um canto de África em Portugal onde a diáspora se reescreve.
E eu sinto o som desse mar, eu sinto o som dessa cultura, quando falam, eu sinto esse vibrar, eu sinto reverberar essa cultura de Cabo Verde, em Cova da Moura.
Eu sinto, não apenas na Cova da Moura, como em outros locais, já aqui em Portugal várias vezes, o som do português crioulo, ou do português falado pelo nativo, originado de países que a língua mater é o crioulo.
Eu não compreendo os portugueses, como também os portugueses não me compreendem, apesar de que falemos a mesma língua.
Mas Cova da Moura fala através dessa juventude, através de seu canto, através da sua voz, da sua beleza.
É um refúgio onde podem ser inteiros e verdadeiros numa diáspora urbana, onde o simples ato de caminhar pela rua ou de se reunir com amigos já é uma afirmação de presença, de política identitária, de resistência.
As pessoas ali constroem, com suas próprias mãos, uma África que se recusa a ser apagada, que se recusa a se render à invisibilidade.
A comunidade se auto-organiza e se auto-protege e se ressignifica, criando um espaço de afeto ante a barreira da violência do esquecimento e da exclusão social a qual a comunidade é lançada.
Cova da Moura resiste como um lugar e território, como espaço e símbolo político.
Carpinteiro de Poesia Francisco Weyl
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