A notícia que circula na imprensa, sugerindo que a Cargill “recuou” da construção de seu terminal portuário em Abaetetuba, soa como uma encenação mal roteirizada — e extremamente perigosa. Tal “recuo” não parte da empresa; parte da pena de um jornalista que, amparado apenas em suposições, tenta manipular a opinião pública e pressionar o poder público. A verdade é que a Cargill não desistiu. Ela segue onclusive com processos jurídicos em curso. A empresa não retirou a ação judicial que lhe permitiria rasgar, legal e simbolicamente, o território do PAE Santo Afonso na Ilha do Xingu, em pleno coração da Amazônia paraense.
Trata-se de mais uma jogada estratégica que visa sensibilizar a sociedade a favor de uma gigante transnacional sob o véu do “progresso”. Mas progresso para quem? A quem interessa a narrativa de que a Cargill está “indo embora” do Pará? No exato momento em que Belém se prepara para sediar a COP30, evento internacional crucial para o futuro ambiental do planeta, a empresa acena com uma farsa: uma “retirada” simbólica para desmobilizar resistências locais e ganhar pontos perante a comunidade internacional.
Enquanto isso, silenciosamente e com métodos questionáveis — cartoriais, midiáticos, jurídicos e políticos — a empresa avança sobre territórios tradicionais, ignora comunidades inteiras, desrespeita tratados internacionais e desmantela os direitos sociais conquistados com luta e sangue pelos povos da floresta.
A terra é do povo, não do lucro
Estamos falando de um território reconhecido pelo Estado brasileiro por meio da Portaria do INCRA, que institui o Projeto de Assentamento Agroextrativista Santo Afonso. Lá vivem 188 famílias, entre pescadores, ribeirinhos, extrativistas e agricultores que fazem da terra e das águas não apenas seu sustento, mas sua história e identidade.
A tentativa da Cargill de implantar um terminal portuário privado nesse território é uma afronta a esses direitos. Pior: é um exemplo escancarado de grilagem institucionalizada. Como bem lembra o advogado Paulo Sérgio Weyl, responsável pela Ação Civil Pública contra a empresa (Processo nº 1043377-41.2021.4.01.3900), a proteção jurídica da terra deve prevalecer sobre qualquer interesse econômico, sobretudo quando este ameaça o modo de vida de povos tradicionais protegidos pela Constituição Federal e pela Convenção 169 da OIT.
Mas a Cargill insiste em alegar que “a comunidade não existe”, que “não produz” e que “não possui título”. Essa é uma estratégia recorrente para deslegitimar modos de vida que não se submetem à lógica do capital. É o mesmo roteiro colonial de sempre: apagar o outro para justificar a ocupação.
A manipulação da COP30
Não é coincidência que essa suposta “retirada” da Cargill venha às vésperas da COP30 em Belém. É uma manobra para limpar sua imagem diante dos olhos internacionais. A empresa sabe que sua presença no Pará — marcada por violações, usurpação territorial e destruição ambiental — pode manchar os discursos oficiais que o Brasil pretende exibir ao mundo como anfitrião da cúpula climática.
Mas quem conhece a Amazônia de dentro, quem vive os impactos reais da presença dessa empresa, não se engana.
Nós estamos aqui. Nós resistimos.
E resistimos com as ferramentas que temos: a organização comunitária, o conhecimento ancestral e o cinema social — como o documentário que estamos produzindo no PAE Santo Afonso, e que retrata com profundidade e humanidade a luta de um povo contra o apagamento de sua existência.
Esse filme não é apenas um registro; é uma réplica. Uma denúncia. Uma resposta direta às táticas da empresa, que tenta anular vozes locais enquanto enche as redes sociais com “cards bonitinhos”, vídeos publicitários e promessas de emprego que nunca se realizam plenamente.
A quem interessa o silêncio?
A Amazônia está sob ataque. Não apenas por tratores e balsas, mas por narrativas bem construídas que tentam reduzir uma luta legítima a um “obstáculo ao desenvolvimento”. O terminal portuário da Cargill não é um símbolo de progresso. É um símbolo de expropriação.
E o silêncio do Estado, diante dessa tentativa de manipular a opinião pública, é cúmplice. Onde está o poder público diante da violação dos direitos de populações reconhecidas por lei? Onde está a consulta prévia, livre e informada — prevista na Convenção 169 da OIT — que nunca foi feita?
A Cargill nunca consultou as comunidades. Ela tentou convencê-las por outros meios, oferecendo migalhas, enquanto já avançava com cercas ilegais e articulações jurídicas que rasgam a legalidade.
Cinema como resistência
Em 2022, como resposta à narrativa oficial da Cargill, lançamos o documentário #ForaCargill, que já está disponível online: assista aqui. A obra é um testemunho audiovisual da resistência local e uma ferramenta pedagógica e política construída com e para as comunidades.
O filme denuncia os impactos socioambientais do projeto, desmonta os argumentos jurídicos da empresa e evidencia o cotidiano digno, produtivo e ancestral das famílias do PAE Santo Afonso e arredores.
Produzido com recursos limitados, mas com o compromisso ético de respeitar os modos de vida tradicionais, o filme já foi projetado em diversos espaços culturais e educativos no Brasil e no exterior, ecoando a luta amazônida para além das margens dos rios.
A produção contou com uma equipe comprometida com o cinema social, como o diretor de fotografia Marcelo Rodrigues, o músico Cláudio Figueiredo, o operador de áudio Luciano Mourão e este realizador. O documentário se apoia em dezenas de depoimentos de lideranças e moradores locais, que se contrapõem à invisibilização midiática e institucional a que estão submetidos.
Não estamos inventando uma narrativa. Estamos reconstruindo uma história que já estava sendo contada pelas comunidades, mas que foi silenciada pelo ruído do capital.
Enquanto o mundo discute soluções para a crise climática na COP30, nós estamos aqui denunciando quem está no centro dessa crise: as grandes corporações transnacionais que se dizem “sustentáveis” enquanto destroem o chão que pisamos e o rio que bebemos.
COP-30: um palco para o capital?
É sob o pretexto da “sustentabilidade” e das “soluções verdes” que corporações como a Cargill tentam reconfigurar suas imagens globais. A COP-30 corre o risco de se tornar um grande evento de marketing ambiental, onde discursos de governança climática e economia de baixo carbono são capturados por quem historicamente degrada a Amazônia.
Não podemos permitir que a COP-30 seja um palco onde as corporações fingem se redimir de seus crimes ambientais e sociais. A Amazônia não está à venda.
É preciso tensionar a COP a partir das vozes das comunidades, dos movimentos sociais, das periferias e dos povos tradicionais. A luta pela justiça climática não pode ser capturada pelos interesses de multinacionais.
Cinema, cultura e luta popular: o Fórum COP-30 Marambaia
Seguimos resistindo com nossas palavras, imagens e corpos. A partir da Rede do FICCA — Festival Internacional de Cinema do Caeté, articulamos o Fórum Permanente de Políticas Públicas Periféricas Marambaia COP-30, com foco em uma abordagem crítica, descentralizada e popular do evento.
Participam da iniciativa: Cordel do Urubu; Boi Vagalume da Marambaia; Casa do Poeta Caeté; Confraria do Jota; Centro Cultural e Biblioteca Comunitária Rosa Luxemburgo; Livraria Gato Vadio (Porto, Portugal); Entre outros coletivos, artistas e educadores populares.
O Fórum é um espaço de resistência estética e política, que busca produzir narrativas alternativas ao discurso hegemônico. Trata-se de romper o monopólio do capital sobre o futuro da Amazônia e afirmar que as comunidades têm direito à terra, à água, à cultura e à vida.
Conclusão: nem COP, nem Cargill, sem o povo
A Cargill não saiu da Amazônia. Apenas mudou sua tática. E a COP-30 precisa ser mais do que uma feira de soluções de mercado para o clima: ela deve ouvir e respeitar os povos da floresta, os que sofrem com a grilagem, o desmatamento e os impactos socioambientais de portos e monoculturas.
A luta contra o terminal da Cargill é também a luta contra todos os grandes projetos que querem transformar a Amazônia em corredor logístico para o agronegócio global. É a luta contra o modelo de morte que transforma floresta em commodity, cultura em estatística, e comunidades inteiras em obstáculos.
Não se enganem com a farsa da retirada. A Cargill não saiu do Pará. E nós, os povos da floresta, também não sairemos.
Este é um chamado à ação.
É tempo de reivindicar o direito à palavra, ao território e à existência digna — para além dos interesses corporativos.
Seguiremos lutando com o cinema, com a cultura, com a memória coletiva. Porque a Amazônia não se vende. Ela resiste.
Seguimos em pé. Seguimos firmes. E seguimos filmando.
Belém do Pará, 22.05.2025
Carpinteiro de Poesia Francisco Weyl
Pesquisador, Poeta, Realizador, Jornalista e Ativista
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