A crítica de cinema, que deveria ser espaço de reflexão e confronto, tornou-se extensão publicitária da indústria. As páginas culturais repetem press releases, celebram estreias globais, reverenciam premiações. O que deveria ser pensamento virou entretenimento; o que deveria tensionar virou ornamento. A crítica, cúmplice do mercado, se ocupa em reforçar o espetáculo colonial.
Nesse cenário, o silêncio não é inocente. É estratégia. Ao não falar do que emerge das margens, a crítica mantém a centralidade do mesmo: o cinema de grandes plataformas, a estética homologada, o fluxo de imagens domesticadas. O que não aparece, não existe. Essa lógica da invisibilização é o braço cultural da colonialidade.
É contra esse silenciamento que o Festival Internacional de Cinema do Caeté (FICCA) ergue-se há uma década. Criado por Francisco Weyl, o Carpinteiro de Poesia, o festival FICCA é um ato de resistência. Ele não busca legitimação no mercado, nem chancela da academia. Sua força está justamente em operar fora desses circuitos: construir pedagogia comunitária, articular cineclubismo, criar laboratórios de formação, exibir filmes que o sistema prefere ignorar.
O FICCA é uma escultura do possível porque transforma precariedade em linguagem. Ali onde falta recurso, nasce invenção. Ali onde falta sala, nasce praça. Ali onde falta distribuição, nasce cineclube. A gambiarra, longe de ser carência, torna-se método. A improvisação não é limitação, mas estética. Essa é a pedagogia insurgente que Weyl sistematiza em sua crítica do cinema amazônico: fazer do cinema um processo de libertação coletiva.
Ao completar dez anos em 2025, o FICCA reafirma sua vocação transgressora. Ao inaugurar a décima edição em ajneiro na Livraria Gato Vadio, no Porto, o festival mostrou que sua geografia é atlântica, rizomática, feita de travessias entre Amazônia, África e Europa num encontro que não apaga diferenças, mas as inscreve como potência estética e política.
Enquanto a crítica oficial se deleita em modismos — celebrando a série da vez, o autor europeu canonizado, o Oscar anunciado — o FICCA segue invisível aos olhos do sistema. Mas é justamente nesse ponto que ele se torna indispensável: o silêncio da crítica mainstream revela a incapacidade das instituições de lidar com práticas insurgentes. O FICCA incomoda porque mostra que é possível outro cinema, outro festival, outra crítica.
O FICCA não é um evento para alimentar o calendário cultural. É uma estrutura, um processo, uma pedagogia, uma máquina de memória. Ele mostra filmes, ele fabrica condições para que filmes existam. Ao criar oficinas, laboratórios e cineclubes, ele rompe com a lógica passiva do espectador-consumidor e faz do cinema uma prática de criação coletiva.
Na história do cinema brasileiro, marcada por exclusões e centralidades, o FICCA é um gesto radical. Radical porque vai à raiz: o cinema como ferramenta de libertação, não como mercadoria. O cinema como pedagogia popular, não como vitrine elitista. O cinema como encontro insurgente, não como espetáculo domesticado.
Se a crítica oficial escolhe o silêncio, o FICCA responde com imagens, oficinas, encontros, persistência. O silêncio do sistema é cúmplice. Mas o pulso da resistência continua a bater, como escultura do possível, no coração do Caeté.
Carpinteiro
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