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CRÔNICAS BRAGANTINAS: E o barco Novo Rumo foi por águas abaixo

 

Palavra de origem Tupy, Caeté é o rio que banha a minha aldeia, tendo, junto com a sua orla e as suas embarcações, constituído uma espécie de tríade, que estrutura a vida, e os imaginários das populações, nas zonas rurais, urbanas e ribeirinhas, em campos, colônias, e praias, por onde também circulam as comitivas dos esmoleiros de São Benedito. 

Junto com o nascer da Lua, por detrás das matas do Camutá, seu espelho revela um espetáculo mágico aos moradores e visitantes da cidade de Bragança do Pará, de cuja orla, partem e chegam dezenas de embarcações, principalmente, com pescado, que é um produto que move a economia e alimenta grande parte da população local.

Antes de desaguar no oceano Atlântico, o rio, com 115 quilômetros de extensão, atravessa e influencia o trabalho e a vida de diversas comunidades do nordeste paraense, nascendo na cidade de Bonito, banha Arraial do Caeté (Ourém), e Tentugal (Santa Luzia), e percorre algumas comunidades bragantinas.

Apesar de receber as águas de rios como Jequi, Cajueiro, e Curi, à margem direita, e de pequenos igarapés, à margem esquerda, o Caeté apresenta trechos pouco profundos, tendo sido, entretanto, outrora, navegável, mas ainda não morreu porque as rodovias, que acabaram com as estradas de ferro, retiraram as comunidades de suas margens, desde a década de 1960.

E, alguns fazendeiros, entretanto, transformaram o leito do Caeté em lixeira, ao atirar detritos e resíduos, restos de tocos, e galhos, de árvores, que eles próprios derrubam em suas terras, ou seja, o fechamento dos afluentes corrobora para que o Caeté baixe o seu leito, e dificulte a sua navegabilidade, sendo que, sob influência de alguns afluentes, o Caeté se torna mais poluído a partir do trecho compreendido entre as Vilas de Mocajuba e do Arimbú.

O Caeté não fala, mas ele murmura, e tem muitas histórias para contar, sendo, estas narrativas, transmitidas por via oral, pelas gerações mais antigas, nestas comunidades distantes, onde ainda se conserva o saudável hábito de sentar em rodas, nos finais de tarde, para ouvir e respeitar os mais velhos, e estes conhecimentos ancestrais, que são repassados nestes lugares de falas e de escutas.

E todas estas histórias e estórias nos remetem a passados impregnados no tempo, presente de nossas memórias, como se entrassem e saíssem de nossas casas, e nos levassem a viagens, nas quais nos deslocamos de carros, em estradas, ou, no leito de rios, pelas suas embarcações, onde nos tornamos navegadores das contradições de suas realidades, que nos afetam a todos que somos filhos desta terra.

Muitas destas histórias se confundem com estórias quando caem no esquecimento, sendo, entretanto, desesquecidas, nos percursos que as pessoas das comunidades fazem no cotidiano delas, todos os dias, desde a hora que acordam até a hora que repousam, por entre os espaços arquitetônicos, que se modificam ou que são destruídos, e cujas memórias guardam ou apagam sonhos destas pequenas cidades, banhadas por rios, e interligadas por caminhos de terra batida, areia e barro, onde pisam estes pés exaustos de longas jornadas que parecem ser as mesmas, sem nunca ter fim, repetindo-se, num ir e vir nauseante, que automatiza as pessoas, mas que súbito as surpreendem e as potencializam a um devir criativo, em que os fatos se transformam em causos e canções, que alimentam a tecitura dos imaginários destes lugares, reconectando as suas populações com acontecimentos que até podem parecer simples e desinteressantes, entretanto, tem uma dimensão simbólica que se impregna no inconsciente coletivo.

E foi em meados da década de 1960 que a prefeitura de Bragança começou um projeto de engenharia naval ribeirinha, construindo uma embarcação na Orla do Caeté, que sempre foi um desses não-lugares públicos por onde todos passam, à margem, ou de barco, criando, neste contraponto, um estranhamento, entre os que chegam a Bragança ou dela partem com aqueles que ficam a ver o subir e descer das águas do rio, e de suas embarcações, portanto, um espaço comum a todos, por diversas razões, sociais, econômicas, e culturais, sendo ainda um ponto agregador de eventos e quermesses que se organizam conforme os calendários das festividades religiosas municipais.

Pode ser que os anais das sessões camarárias sejam mais específicos ou os registros cartorários e das câmaras comerciais, entretanto, este cronista limitou-se a sua própria rede de amigos para contar esta história, ou estória, que se faz, por isso mesmo, carente de dados oficiais municipais, assumindo-se o risco de que pela falta de informação, a realidade se torne ficção, pelo que a crônica vai mais se parecer com os registros memorialísticos orais dos que se recordam do Novo Rumo, que é como foi batizado o barco cuja construção começou sem jamais ter sido concluída, ficando a embarcação a espera de ordens superiores ou de financiamentos para que o projeto fosse levado avante.

O próprio nome da embarcação por si só já chama a atenção e dispensa comentários, Novo Rumo, ou seja, a partir da sua construção e do seu lançamento às então águas navegáveis do Caeté, Bragança poderia vislumbrar um novo momento na sua navegabilidade comercial, o que, afinal, não aconteceu, estagnando-se o projeto, numa altura, que também foi marcada por retrocessos econômicos e desmontes de infraestruturas, como o da estrada de ferro, cuja sobrevivência já estava ameaçada pela queda do ciclo da borracha, desarticulado pelo cartel pneumático e pela recente indústria de automóveis, que tinha interesses em vender pneus e veículos para circular em rodovias, e descartar as ferrovias.

As pessoas começaram a questionar o sobre o investimento do dinheiro público no empreendimento que foi por águas abaixo, literalmente, entretanto, quando começou a ser construído, o Novo Rumo despertou curiosidade e interesse de Bragança, tendo a orla se tornado alvo de visitas por causa do barco, que se foi afundando, desaparecendo em meio ao tijuco, ou seja, depois de abandonado à própria sorte e às intempéries do tempo, à sol e a chuva, o Novo Rumo começou a ruir, primeiro pela parte de cima, desfazendo-se as obras mortas, nas quais se usaram madeiras menos resistentes, como sucupira, loro, andiroba, e acapu, passando, a embarcação, a sucumbir, na sua parte central, ainda que as fibras da itaúba aplicadas no casco e no forro tentassem suportar a passagem do tempo, desprendendo-se, de seguida, as beirinhas, que ficaram sem consistência pela falta de manutenção da calefação, quebrando-se ainda, os braços e a escoa, e, deteriorando-se, finalmente, o talhamar, a espinha e a quilha, que foram construídas com madeiras de maior durabilidade, como o piquiá e o ipê, entretanto, sem, nenhuma cobertura de tinta ou impermeabilização, o que corroborou para a maior fragilidade e desfazimento das partes semi-construídas do Novo Rumo.

Naquele período final da década de 1960, os barcos desciam o Caeté, e aportavam na Aldeia, onde hoje funciona a feira, sendo as mercadorias e as cargas descarregadas, tanto quanto as dezenas, e as vezes as centenas de bois, que eram atados às frondosas mangueiras, para o abate, desde a rua do Cruzeiro (hoje, Travessa João XXIII) até ao Matadouro, razão pela qual a Alameda Leandro Ribeiro se chamava Rua do Curro, que objetivamente fedia a merda, pelo que tínhamos de estar atentos, principalmente de noite, ao voltarmos da Missa, com as luzes apagadas, porque, naquele período a energia era coisa rara, e os bois, muitas vezes davam enormes sustos, quando súbito se movimentavam e apareciam por detrás das árvores, sendo comum, ainda nestes tempos, os meninos escalarem os muros do matadouro para ver a matança dos bois, e também tirar a tuíra nos banhos no rio Curro, que era o mesmo braço do rio Cereja, que recebia outros nomes, associados ao lugar por onde passava, chegando a sofrer a influência da maré do Caeté, já mais próximo do matadouro.

Recordo-me ainda pela memória de meu irmão que habitava com meus avós paternos, Bento e Maroquinha, na Rua Coronel Antônio Pedro, entre a Alameda Leandro Ribeiro e a Rua Sônia Ferreira, que esta Rua, a Antônio Pedro, começava na Cônego Clementino, no Cereja, passava e ainda passa diante do Colégio Santa Terezinha, e terminava na frente da casa do Pedro Marinheiro, cujo quintal dava para o mangue, mas hoje está mais urbanizado, seguindo-se, adiante, a área de invasão do Portinho, sendo que naqueles anos, finais da década de 1960, começo da década de 1970, quando ainda havia o majestoso túnel de mangueiras da João XXIII, sendo o espaço descampado até em frente da Maçonaria, e, do lado oposto, quase diante do Cruzeiro, o sobrado em que morávamos, próximo do qual, anos depois, meus avós maternos, Odorico e Augusta, habitaram, tendo o vovô edificado uma espécie de alpendre, onde movimentou uma pequena mercearia, que batizou de Casa Olinda, mesmo nome do comércio que ele possuía algumas quadras acima, na Rua Visconde do Rio Branco, sendo esta mercearia também frequentada por uma das personalidades bragantinas, o Pamonha, que era habituê do bar do Clovis, que funcionava numa das esquinas de onde começava o campo do Bragantino, e onde hoje é a Praça Rosa Blanco, onde, bêbado, que gostava de cantarolar versões que ele fazia para marchas carnavalescas, nas quais ele se colocava como personagem, entre as quais esta que nunca saiu da cabeça de um de meus irmãos: “Eu ouvi pancadinha na janela, pensando que era um padeiro, fui abrir era Maria Estela, a única mulher que eu conheci, e ela me disse, não faça isso, não, você é o Pamonha, dono do meu coração”.

Francisco Weyl

Porto, 4 de Setembro de 2020

Ouça a CRÔNICA


Este texto constitui a nona sessão do Microprojeto CRÔNICAS BRAGANTINAS, pela via da qual publico narrativas escritas e memorialísticas autorais neste espaço, além de audionarrações que podem ser ouvidas neste Blog ou no Canal do Carpinteiro no Youtube.

Comentários

Joana Chagas disse…
4 foi o número de cigarros que traguei para me deliciar com esta crônica cheia memórias tuas. Conheço quase nada de Bragança. Porém, a cada crônica tua, fico mais apaixonada pela cidade. Parabéns, Carpinteiro.

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