A crise climática avança como uma sombra sobre os ecossistemas, sufocando a vida que pulsa na biodiversidade e fragilizando a existência das comunidades indígenas, das populações extrativistas, ribeirinhas, quilombolas, pequenos agricultores e daqueles que resistem nas periferias. Essas terras e rios, que sempre foram fonte de sustento e sabedoria, agora enfrentam a fúria de uma natureza desequilibrada.
Na imensidão da Amazônia, as secas, que outrora vinham em ciclos conhecidos, tornaram-se implacáveis. O desmatamento desenfreado e o impiedoso El Niño cortam o fluxo da água que nutre a vida, transformando a terra em pó e comprometendo a mesa das famílias. Em 2024, essa seca, a maior de todas, esvazia os rios, isola vilarejos e leva embora a certeza do amanhã, privando as gentes de água, alimento e o caminho por onde passam suas esperanças.
As comunidades, tecidas pela relação ancestral com a floresta, agora veem seus modos de vida escorrer pelos dedos. Perdas incontáveis em biodiversidade e colheitas. A terra, que um dia oferecia abrigo, agora geme diante de uma crise ambiental jamais vista, onde os extremos climáticos se repetem, cada vez mais ferozes.
De acordo com Relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito da Assembléia Legislativa do Pará, pelo menos 27 acidentes ambientais ocorreram no Estado entre os anos 2000 e 2021, envolvendo emppresas como Albrás/Alunorte, Imerys, Hydro, não esquecendo de empresas com Agropalma e Cargill que impactam drasticamente pequenas comunidades. Falamos de vazamentos e derramentos de óleo, de carvão mineral, de lama vermelha, de rejeitos de caulim, chuvas de fuligem, estouro de tanque de soda cáustica, mortandade de peixes, rompimento de duto, naufrágios de navios, despejo de soja e fezes de boi, contaminação das praias por metal pesado e resíduos de esgotamento urbano.
Este modelo de desenvolvimento predador avança como uma ferida aberta. Agronegócio, mineração, rodovias e hidrelétricas esculpem cicatrizes no corpo da Amazônia. A floresta queima, o solo treme, e os direitos das comunidades são apagados como se fossem poeira ao vento. Monoculturas de soja, a mineração insaciável e as hidrovias incessantes rasgam a terra, lançando ao ar toneladas de gases que sufocam o planeta e acendem o fogo do aquecimento global.
E, como sempre, os mais vulneráveis pagam o preço mais alto. Desabrigados, famintos, mortos. O racismo ambiental, cruel e silencioso, mostra seu rosto onde as mudanças climáticas atingem mais forte: nas populações do Sul Global, que sobrevivem sob os escombros de um planeta que já não reconhece seus filhos. Hidrelétricas gigantes como Jirau, Santo Antônio e Belo Monte não só alteram o curso dos rios; elas reescrevem o destino de quem vive às suas margens. A energia que prometiam raramente chega aos lares locais, enquanto as comunidades são expulsas e suas terras, engolidas pela lama do "progresso."
Mais de metade da devastação na Amazônia nasce das mesmas mãos: madeira extraída sem remorso, gado pisoteando a terra e o agronegócio empurrando a fronteira da destruição. É urgente repensar este modelo que nos conduz ao abismo. Precisamos de políticas globais que não apenas combatam as mudanças climáticas, mas que também curem o coração da Terra. Políticas que acolham os saberes ancestrais, que respeitem a voz das comunidades, e que unam a preservação do meio ambiente à justiça social. Só assim poderemos restaurar o equilíbrio perdido e sonhar com um futuro que ainda possa florescer.
Por esta razão, este movimento, através do Cinema e de seus realizadores do Atlântico, capitaneados pela ACAV-CV e seu líder, o documentarista Júlio Silvão, deve ser um Fórum Permanente e aberto, de forma que este debate não saia de pauta.
E isso nos interessa a nós, particularmente, paraenses, porque a capital Belém irá sediar em 2025, a COP30, onde o próprio governador Helder Barbalho já negocia créditos de carbono sem que o país tenha uma Marco Regulatório, ainda que a Câmara dos Deputados tenha aprovado o Projeto de lei 2148/15, que regulamenta o mercado de carbono no Brasil e cria o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE), mas, como a votação desse PL é bicameral, encontrando-se ainda no senado federal. Até porque, ao assinar o Acordo de Paris de 2015 firmado por cerca de 200 Nações, o Brasil assumiu o compromisso de reduzir suas emissões de carbono em 50% até 2030, estabelecendo objetivos para limitar o aquecimento global a "bem abaixo de 2°C" até o final deste século.
Cerca de 30 ações serão executadas pelo governo do Pará, que está de olho nos US$ 300 milhões que o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) anunciou para investir na infraestrutura e reformas para melhorar os serviços de água e seaneamento na cidade de Belém, no Pará, que irá sediar em novembro de 2025 a COP 30, evento da ONU para mudanças climáticas. E todo este circo vem sendo montado desde 2023, quando a capital do Pará sediou a Cúpula da Amazônia, que reuniu os presidentes de Brasil, Colômbia, Peru, Bolívia, Equador, Venezuela, Guiana e Suriname para discutir as questões da região, resultando numa utópica “Declaração de Belém”, que sem tocar nos crimes ambientais perpetrados por empresas e grandes projetos, aponta para um suuposto desenvolvimento “sustentável”; a “proteção” e/ou a “preservação” da Amazônia, com a meta de “desmatamento zero” até 2030. Ou seja, é um jogo de sombras e luzes, onde os interesses econômicos de grandes corporações frequentemente ofuscam os direitos das comunidades quilombolas e tradicionais, periféricas.
E o que nos resta a nós, realizadores, amazônidas, comprometidos com as grandes causas de nosso tempo diante de tantas ameaças contra a humanidade, a vida de comunidades originais, e da floresta?
Com a retomada do Ministério da Cultura com o governo Lula, o país, que agonizava na área cultural em razão de governos de perfil fascistas, registra R$ 6,1 milhões em investimentos para projetos audiovisuais aprovados via editais públicos. Os aportes no setor por meio da Lei Rouanet somam R$ 971,5 milhões, contemplando 1.088 projetos. Em 2023, o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) destinou R$ 1,3 bilhão para produção de conteúdo nacional. Selecionou 364 filmes e séries, apresentados por 323 produtoras brasileiras. Disponibilizou R$ 537 milhões em crédito ao setor audiovisual. De acordo com balanço apresentado pela ANCINE, os investimentos chegaram a R$ 2,4 bilhões, sendo R$ 1,2 bilhão disponibilizados pelo Fundo Setorial Audiovisual. Somente à Lei Paulo Gustavo, foram disponibilizados exatos R$ 3.861.974.13. E, este ano de 2024, o Governo Federal já aunciou investimentos de R$ 1,6 bilhão para linhas de créditos, construções de estídios, filmes, empregos, coprodução internacional, etc.
Ainda que Brasil, Argentina, México e Cuba tenham se destacado, se pensarmos o cenário da América Latina a indústria cinematográfica fica à deriva das grandes produções estrangeiras, que hegemonizam o mercado. E, no que refere aos indicadores de salas de exibição brasileiras, em 2024, cerca de 92,2 Milhões de pessoas pagaram para ver filmes no país, num total de cerca de R$ 1,82 Bilhões, entretanto, estes números despencam quando comparamos ao cinema brasileiro, que teve uma renda de R$ 144,81 mil, para um público de 7,61 Milhões de pessoas. Entre 2001 e 2004, 82% filmes exibidos no país eram norte-americanos, sendo que 16,3% eram co-produções associadas aos Estados Unidos. E nem as reservas e cotas para exibições de nacionais contém esta situação.
Na Amazônia, os cineastas navegam contracorrente, distantes dos grandes centros, mas mesmo assim há realizadores, que levantam bandeiras simbólicas através de suas mensagens imagéticas. E para ilustrar, cito como exemplo o meu filme #FORACARGILL, que denuncia, por exemplo, os ataques de uma empresa do agronegócio como a Cargill, na Ilha do Capim, em Abaetetuba. O governo brasileiro concedeu à Cargill o direito de uso de área do Projeto Agroextrativismo – PAE Santo Afonso. Mas a área havia sido concedida à população tradicional, em 2005, em reconhecimento ao previsto pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. No processo administrativo, a Superintendência de Patrimônio da União afirma que não há ocupação tradicional na área. A Caritas Regional Norte ll ajuizou Ação Civil Pública para anular a concessão e restaurar o direito do povo ao território. A Defensoria Pública da União ingressou na Ação e reforçou o pedido de nulidade. Em abril de 2022, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária revisou a Portaria de criação do PAE, o que favoreceu a Cargill. Então, a Caritas renovou o pedido de nulidade, abrangendo o Ato irregular do Incra. A ação está em andamento na 1ª Vara da Justiça Federal em Belém, Estado do Pará.
Há muito que os realizadores de cinema amazônida criam obras sem que sejam vistas e falam sem que sejam ouvidos, ou seja, nem a Amazônia não se (re)conhece e nem a Amazônia consegue comunicar a sua diversidade criadora aquém ou além de suas fronteiras (parafraseando o grande Glauber Rocha: nem a Amazônia comunica a sua miséria ao homem civilizado, nem o homem civilizado compreende verdadeiramente a miséria do homem amazônida). Se a Amazônia não (se) comunica, não é porque ela não sabe comunicar, mas porque as normas da cultura estabelecidas provocam a exclusão das falas e das práticas amazônidas, sendo essa a nova forma de apartheid: aqui chegam as boas intenções, não os recursos financeiros. Recebemos os discursos, mas não os projetos.
A nossa História da Amazônia paraense se confunde com a História do Pará: histórias de saques e massacres, cuja escrita tem sido obra dos exploradores. Desde os tempos coloniais, passando pelo ciclo dos coronéis do seringal, e pelo tempo neoliberais, o Estado tem servido apenas para facilitar o assalto ao patrimônio material e imaterial da sociedade, entretanto, pretende-se uma viragem histórica, que transporte em si os paralelos imagéticos de uma herança que precisa ser afirmada, a dos antepassados paraoaras-amazônidas, indígenas, negros, extrativistas, trabalhadores rurais e urbanos, estudantes, mulheres.
Enquanto gesto (político, estético e poético) de enfrentamento do atual estado das coisas, sem o estereótipo do panfletário e/ou experimental, o cinema de guerrilha amazônida aprofunda nossas contradições e retoma a história da arte cinematográfica regional, razão porque nos opomos à narrativa (seja ela literária ou cinematográfica, mas sempre burguesa). É um Cinema Pobre que se afirma artístico, pobre, porque despojado, pobre porque embora nasça rico, intenso, espontâneo, violento, com o tempo se vai, esvai-se, desintegra-se, vitorioso, poético, de vitória em vitória até à derrota final – a morte e a eternidade, num devir caótico retroalimentado pela autodestruição.
Lisboa, 10.10.2024
Francisco Weyl
CARPINTEIRO DE POESIA
[TEXTO LIDO no âmbito do do 2º Painel do IV WEBINAR INTERNACIONAL DA ACACV - Associação Cinema e Audiovisual de Cabo Verde. TEMA: Aquecimento Global v/s Atlântico v/s Cinema, organizado pela Associação de Cinema e Audiovisual de Cabo Verde, no quadro do FIAC - Festival Internacional de Filmes para Ação Climática do Atlântico.]
Fontes consultadas: MIinistério da Cultura do Brasil; Agência Câmara de Notícia; Relatório da CPI da Assembleia Legislativa do Estado do Pará (2018); “A indústria cinematográfica no Mercosul: economia, cultura e integração” (César Ricardo Siqueira Bolaño / Cristina Andrade dos Santos / José Manuel Moreno Dominguez); Agência Brasil; BPBES; Camila Fróis, Jenifer Tainá ( Movimento Atingidos por Barragens- MAB); Fabiana Reinholz (Brasil de Fato); Carlos Alberto de Sousa Cardoso (Esquerda Net); Beatriz Luz (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra- MST)
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