A relação entre o FICCA – Festival Internacional de Cinema do Caeté – e a Mostra Internacional de Cinema Negro (MICINE) não se sustenta em homenagens protocolares ou aproximações circunstanciais. O que une os dois projetos é uma orientação intelectual compartilhada: compreender o cinema como prática crítica, como forma de organização do pensamento político e como ferramenta de resistência estética diante das estruturas que historicamente tentam controlar os modos de ver e narrar o Brasil.
A MICINE, sob a curadoria de Celso Luiz Prudente, consolidou a leitura de que a imagem negra é soberania – não resíduo folclórico, não tópico identitário, mas centro produtor de linguagem e conhecimento. Esse deslocamento do olhar, que reorganiza a história do cinema brasileiro, dialoga diretamente com o que temos desenvolvido no âmbito do FICCA: um campo emergente de reflexão sobre o cinema amazônida, especialmente aquele que nasce do Atlântico Paraense, território hoje reconhecido como Região do Caeté.
Esse diálogo se intensificou nos últimos cinco anos, período correspondente ao nosso processo de pesquisa doutoral (PPGARTES/UFPA – ESTC/Instituto Politécnico de Lisboa – CAPES). Nesse intervalo, consolidamos uma interlocução contínua entre pensamento e prática, ampliando a investigação sobre uma linguagem amazônida que se estrutura pela resistência. Foi nesse contexto que a parceria com Prudente se afirmou não como afinidade pessoal, mas como convergência epistemológica: a defesa de cinemas periféricos que produzem pensamento a partir de seus territórios.
Nesse processo, a colaboração em artigos publicados pela MICINE tornou-se parte fundamental do trabalho. A escrita compartilhada com Hilton P. Silva e Danilo Gustavo Asp integra um esforço coletivo de análises sobre cinema e relações de força, com atenção específica ao Nordeste Paraense e ao conjunto de experiências audiovisuais que emergem de comunidades quilombolas, ribeirinhas, indígenas e periféricas. Esses textos examinam a estrutura política que determina o acesso aos meios de produção audiovisual, as estratégias de sobrevivência criativa desenvolvidas pela região e a constituição de um pensamento estético que se enraíza na experiência territorial.
A contribuição amazônica a esse livro organizado pela Mostra não se limita à descrição de práticas locais; ela propõe categorias próprias – estéticas de guerrilhas, poéticas das gambiarras e tecnologias do possível – que vêm sendo desenvolvidas no campo teórico e aplicadas nos processos de formação, realização e circulação de filmes produzidos na região. Esses conceitos não funcionam como slogans, mas como ferramentas analíticas que permitem compreender o cinema como ação política distribuída entre corpos, coletivos e territórios.
Nesse sentido, a parceria entre FICCA e MICINE é resultado de uma aproximação que se sustenta na consistência do trabalho e na afinidade metodológica. Ambas as iniciativas recusam a leitura hegemônica que coloca a periferia como destinatária da cultura e reivindicam a centralidade das bordas como produtoras de pensamento. Ambas operam a partir de epistemologias que valorizam a experiência direta, a oralidade, a coletividade e a intensidade do gesto criador. Ambas defendem que o cinema amazônida e o cinema negro não ocupam posições auxiliares no campo audiovisual brasileiro, mas reorganizam esse campo desde sua base.
A publicação que a MICINE lança agora, reunindo textos de diversos autores, reforça a importância de manter essa política de articulação entre crítica, território e insurgência. Estar presente nesse volume, com um artigo construído em parceria, é integrar um acúmulo estratégico que já reconfigura o debate nacional sobre imagem, raça, território e futuro. E essa presença não se dá como exceção, mas como continuidade de um percurso: os artigos escritos ao longo desses anos tornam-se parte do mesmo movimento que atravessa os filmes, as formações, os debates e os festivais.
Se há algo que caracteriza a relação entre o FICCA e a MICINE é a clareza de que pensar cinema é disputar mundo. E que essa disputa exige rigor, densidade e responsabilidade intelectual. A parceria não se explica por vínculos afetivos, embora eles existam; ela se justifica pela convergência em torno de um projeto crítico mais amplo: afirmar que o cinema brasileiro só se sustenta plenamente quando reconhece as matrizes negras, indígenas, amazônidas e periféricas que lhe constituem a espinha dorsal.
É esse o lugar de encontro entre o Caeté e a Mostra de Cinema Negro: pensar o cinema como força que se produz nas bordas e que, justamente por isso, tem potência para redefinir o centro.
Franciso Weyl

Comentários