Uma história que se faz por si própria, mas que ainda precisa ser contada, é a da fábrica de velas São João.
A empresa funciona há mais de 80 anos, tendo sido fundada em 1938.
E não tem um paraense que não conheça ou não saiba da existência da fábrica sediada no bairro mais antigo da capital paraense.
Além das velas, sebo de Holanda também é produzido na fábrica e a loja tem artigos religiosos, esotéricos e decoração.
E é lá na Rua Doutor Assis, 52, bem ao lado da Catedral Metropolitana de Belém, que a fábrica de velas recebe com carinho seus clientes, num espaço bem aconchegante.
A proprietária, a empresária Ana Lúcia Chaves Brahuna, que aprendeu o ofício com o pai, João Agostinho de Moraes Chaves,um dos fundadores da fábrica, hoje, divide a responsabilidade da gerência com a filha, Luciana Brahuna Neves.
Mulher de força e inteligente, Ana tem orgulho da fábrica, da qual ela fala com uma simpatia que lhe é peculiar.
Numa rápida estada na loja, qualquer cliente mais curioso como eu fica sabendo de alguns segredos da fábrica de velas São João.
E para se ter ideia do que eu estou a falar e escrever – e que senti quando lá fui pela primeira vez, na terça-feira desta semana (25 de Maio), algumas máquinas são tesouros históricos, funcionam há cerca de cincoenta anos.
O maquinário de feitura do pavio das velas é tão poético que parecem máquinas de tear.
O processo artesanal é realizado com o cuidado e o carinho de quem ama o que faz.
A maioria das trabalhadoras e trabalhadores da fábrica são funcionários que têm cerca de vinte anos de experiência.
O coração da fábrica é uma antiga caldeira que fica
num galpão, aos fundos da loja.
E foi neste galpão que Ana, como ela gosta de ser chamada, narrou algumas histórias e estórias.
Mas, nem todas eu conto neste texto, que faço de forma desinteressada, enquanto o escrevo, à título de gratidão, e com o intuído de despertar o leitor para este espaço.
Jornalista de formação, Ana é uma pessoa interessada pelos fatos de seu tempo.
Tanto que, através da fábrica, ela realiza um trabalho coletivo e sócio-cultural desde quando acolheu a Rede da Sereia, criada pelos moradores da Cidade Velha.
Ana caiu na Rede e ajudou a desenvolver a Multifeira, um dos projetos da Rede Sereia, ao ceder espaço para artistas e artesãos que negociavam seus produtos diante da Igreja da Sé.
Com esta parceria, inclusive, a artista Roberta Mártires ministrou uma oficina de crochê criativo no âmbito do projeto Circular Campina Cidade Velha.
A fábrica também sediou a exposição “Senhora de Nós”, de Roberta Mártires, a partir das velas e mantos que ela criou especialmente na fábrica.
Sobre esta exposição da Roberta, eu escrevi um texto, postado no Holofote Virtual (https://holofotevirtual.blogspot.com/2020/09/roberta-martires-cria-mantos-para-ns-de.html)
Além disso, o espaço da fábrica serviu de locação para um curta da Abaya Coletiva, exibido no Auto do Círio do ano passado.
Entre os diversos tipos e tamanhos e cores de velas da fábrica São João, estão também as afroreligiosas, além de velas que representam imagens de santos como São Jorge e São Benedito.
Por ter nascido na beira do rio Caeté, emocionei-me quando vi a vela do Santo preto, padroeiro da Marujada de Bragança.
E enquanto Ana mostrava alguns processos e maquinários da fábrica, ouviu-se o bater do portão do galpão, que dá acesso para a Travessa Félix Roque.
Eram os entregadores de parafina.
Produto derivado do petróleo, a parafina é matéria prima da vela.
Enquanto observo as velas serem feitas com primor, Ana informa que este e outros produtos estão difíceis de serem encontrados no mercado.
Ou seja, a pandemia atormenta a vida de empreendedores e trabalhadores.
Além da parafina, um barbante preparado especialmente para pavio compõe o sistema de produção da vela.
Há toda uma ciência neste processo artesanal de fabricação, de forma a evitar problemas futuros, inclusive, desfilamentos e incêndios.
Antes de ser modelada, junto com o pavio, a parafina é aquecida e fundida numa espécie de caldeira.
Depois de feitas, as velas são colocadas em pequenas caixas de papelão, sendo que, normalmente, as embalagens contém oito velas de tipo 2, 3 e 4, mas há também velas decorativas, em formato de coração.
E a fábrica de velas São João tem por assim dizer, uma cereja do bolo.
É o popular sebo de Holanda, originário da medicina popular, cuja patente a fábrica detém no Estado.
Há toda uma narrativa, alguma já comprovada cientificamente quanto aos poderes miraculosos deste produto.
Anti-inflamatório, cicatrizante, anti-hoxidante e hidratante, rico em vitamina E, pode ser aplicado na pele, rachaduras de pés, e feridas.
Derivado da gordura do carneiro adulto, o sebo de Holanda até pode aliviar dores musculares e fadiga.
Dizem que também é muito bom para picadas de inseto, coceiras e até para bronquite.
As caixas da fábrica de velas São João disponibilizadas com sebo de Holanda ao público constituem um kit de oito tabletes que pesam no total cem gramas.
A fábrica de velas São Joao abre oito horas da manhã, fecha no horário do almoço, reabre quatorze horas, e encerra o expediente pelas dezoito horas, no badalar dos sinos da Sé.
E, se considerarmos o Círio de Nazaré, cujos promesseiros adquirem produtos na loja da fábrica para depositar no Carro dos Milagres da Santa padroeira dos paraenses, podemos melhor perceber a relação deste espaço com a própria História de Belém e do Pará.
Quem é e mesmo quem não é paraense, sabe muito bem do que estou a falar, digo, escrever.
Cada promeseiro tem dentro de si uma bela história de superação e devoção e este sentimento também atravessa a energia da fábrica de velas São João.
Quando uma pessoa compra uma vela ou um incenso, há diversos elementos simbólicos que são transportados neste desejo, que não se resume ao consumo por si só.
Há uma energia na fé e na esperança de cada pessoa, independente de seu credo religioso.
Quando acendemos uma vela, invocamos a magia da ancestralidade.
Além de iluminar, a vela torna o ambiente mais agradável.
Sagrada ou profana, a vela nos toca a alma.
E o seu bruxulear nos remete a um tempo que apenas a nossa memória é capaz de evocar.
Vê-la acender, observar a chama arder, e mesmo apagar, são momentos de passagens para a ãnima.
Existem até estudos para as ceras que resultam das velas depois de queimadas.
Acendemos velas aos mortos, mas também para a vida.
E Ana é uma mulher cheia de vida, porque também ela tem histórias de superação.
E por isso sonha em diversificar, a partir dos equipamentos que ela guarda e que são desde o nascedouro da fábrica.
Tenho certeza que com o fim da pandemia, ela vai construir esta utopia, com a qual tem sonhado e de certa forma ensaiado, ao apoiar projetos sociais e artísticos com a empresa.
Quando estava para sair da fábrica, Ana fez questão de chamar o segurança, um gato de nome João, que, entretanto, não deu o ar da sua graça.
Mas haverei de retornar, nem que seja para ver o bichano.
© Carpinteiro de Poesia
Belém, 28 de Maio de 2021
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