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CRÔNICAS BRAGANTINAS: O sorriso era o ingresso no Big-Circo


Cresceu entre carrocerias de velhos caminhões, entulhados de lonas e objetos de cena, nas paragens e permanências temporais de pequenas localidades com as quais também aprendera o seu ofício de observação e do respeito das desconhecidas pessoas com as quais convivera, escolhendo-as, uma a uma, preservando a sua segurança e garantindo a sua credibilidade.

Forjado nas permanentes mudanças de espaços e cidades e nas dificuldades cotidianas de quem encara uma vida em andanças e errâncias, nômades, quando muito, apenas com a certeza do momento - de agora, e talvez com o dia de hoje, porque o amanhã, a Deus pertence.

Natural do Ceará, Alex Marques nasceu e trabalhou a vida inteira no “Big Circo”, junto com o pai, Robson de Alencar, e sua família, mas quando montou sua própria lona, batizou de Big Circo das Estrelas. Não tinha lona e a empanada era preta, então, ele cercava o salão das comunidades, o povo trazia a cadeira na cabeça, e se mobilizava, ajudava, com generosas doações, desde roupas até alimentos.

          Alex Marques

          (Foto DRI TRINDADE)

Quando o conheci, em 2014, ele estava com 32 anos, tendo criado seu Big Circo um ano antes. Fez a própria estrada com mulher e quatro filhos (Monique ARENA, 6 anos, dançarina; Pedro MIDAS, 5 anos, palhaço; Jorge ATLAS, 10 anos, Mestre-Cena-Palhaço, Monociclo e Arame; e Wesley WILIEN, 11 anos, palhaço “Filezinho”, Monociclo, e o es-pe-ta-cu-lar “Homem Aranha”). Os filhos compõem  a terceira geração circense, e a arte vai passando  às crianças, que já nascem no circo, estudam pela manhã, ensaiam a tarde, e, a noite, fazem espetáculo.

O Big Circo das Estrelas percorreu diversas comunidades, colônias e campos bragantinos, ocupou barracões para fazer arte circense, nas matinês e vesperais dos fins de semana. Passou pelo município de Augusto Correa e pelas Vilas do Perimirim, Treme, Bacuriteua, Cajueiro, Flecheira, Castelo, e Jiquiri, onde sofreu assalto, tendo sido furtada sua renda, além de ter sido agredido. Os ócios do difícil ofício.

Alex gostava de olhar o movimento da meninada do lado de fora do “Big Circo”, tendo, em Bragança, sido montado na principal avenida do bairro Alto Paraíso, no terreno do João Galo, proprietário do açougue Fé em Deus, um dos parceiros que ajudou e garantiu a sobrevivência dos artistas e da própria história deste circo, consequentemente, da cultura popular local.

A rotina de Alex era simples, acordava, ia às ruas, dialogar com pessoas, fazer amizades, parcerias com comerciantes locais, anunciar o espetáculo, e até permitir que meninos e meninas e jovens entrem de graça no Circo, depois de garantir uma lotação mínima com renda entre R$ 200 e R$ 350 reais, dividida com a pequena equipe que se alternava nas atrações.

Mas, ainda que tenha começado sem lona, só com o pano de roda, Alex pensa em comprar uma lona maior do que a de plástico azul rasgado que cobre o seu Circo. Sonhador, quando fala, refere-se a um Circo que não existe, um Circo diferente daquele ao qual ele tem, um Circo idealizado, que ele constrói todos os dias, na labuta e no corpo-a-corpo, nas periferias das comunidades, sem estruturas de acesso aos diversos serviços públicos, bens sociais e produtos culturais, enquanto ele opera com o publico, sem teatro, numa realidade que se forja no momento do acontecimento.

Mas, o Circo do Alex sonhador se compõem de atrações externas, conforme a temporada. Tem o Ruco, do Maranhão, que segura duas motos, e no dia seguinte, quatro motos. Tem o Homem do cabelo de aço, que puxa um carro com o cabelo. Tem a vassoura magricela, que dez homens não segura, mas a mulher domina. Tem o Magico de rua. Ilusionismos. O festival da tremidinha, e do funk. A galinha maluca, com prêmio de cem reais para quem acertar nela. Tem o homem do peito de aço que quebra uma pedra de duzentos quilos. O homem de fogo que anda sobre brasas. O homem da pedra de gelo. Jogadores de facas. Trapézios. Monociclos. Homem do aranho bambo. E o espetacular homem aranha. E Alex conta ainda que o Big Circo tem oito cães amestrados, entretanto, como há duas cadelas prenhas, estes animais não atuam, mas quando o fazem, andam até de skate.

O Big Circo instalado no bairro Alto Paraíso, entretanto, contava em média com o trabalho em média dez pessoas, seis das quais no picadeiro, e as demais no apoio. Eles dependiam de uma meta financeira para obterem lucro. E Alex trocava o apoio de comerciantes por anúncios que faz na Rádio “boca-de-ferro” do Circo. A venda de produtos como pipoca, água e refrigerante do lado de fora não entra no caixa do grupo. E da venda de ingressos apurados na bilheteria, retiram uma parte para o frete do caminhão, que em geral custa R$ 400 reais, sendo, o restante dividido com os artistas. Esta era a realidade.

Nos espetáculos que assisti, observei, que, sem demarcação, o espaço da arena é simbólico, o solo acidentado, e o mato mal cortado. As sessões duram pouco mais de uma hora, e têm prologados intervalos para mudança de roupas, e de objetos de cena das reduzidas atrações que são o Alex e seus filhos. Entre estas arações, os tradicionais números de palhaço, equilibrismo, trapézio, malabares e engole fogo, intercalados por músicas estilo “pancadão”, além de publicidades de comércios locais como o “pão da Cristina”, o “açaí do nosso amigo Pedro Filho”, o “mercadinho” do Jonas e da Marli, a fruteira “Gotinhas de luz”, o “mercadinho” Lopes, “Paraíso móveis”, oficina “Boa Fé” e açougue “Fé em Deus”.

É, era bem pequeno o Big Circo, era pequeno, mas, lotava. E as atrações lutavam com dificuldades extremas para divertir o público, que pagava ingressos de R$ 3 reais, para adultos, e R$ 2 reais, para crianças, que eram devidamente orientadas a não fazerem em casa o que viam no “Big Circo”, porque quem brinca com fogo se queima e quem anda no vidro se corta.

Era um trabalho de incertezas e surpresas, quando armado provisoriamente. Recordo uma vez que o Big-Circo deixou Bragança no dia 17 de setembro, porque é o dia de meu aniversário. Desmontaram a lona pela manhã e seguiram viagem pela tarde, deixando um vazio na comunidade onde estava instalado. Esta trajetória do Big-Circo das Estrelas foi filmada num processo de imersão dialógica e de relações afetivas que estabeleci com Alex e seus filhos, durante encontros e apresentações, entretanto, muitas vezes, nem eu sabia para onde eles se deslocaram, já que os sinais de telefones celulares são muito escassos em determinadas comunidades, então, eu usava o meu faro, indagava, e seguia caminho a procura do Big-Circo.

Os circos são cercados de mistérios, histórias e estórias que se (entre)cruzam. Eram aquelas incertezas - das quais são feitas as vivências de quem se aventura no mundo circense - que me despertaram a dar partida a um projeto audiovisual. E quando decidi atuar com o Big-Circo, optei pelo fascínio que este mágico mundo proporciona, mundo onde construímos sonhos e projetamos utopias, para além das realidades que nos batem à porta e nos chamam para enfrentar as questões básicas cotidianas, entre as quais, a necessidade que o ser humano se alimentar, ao acordar, depois de uma linda noite de sono e de sonho, quando o artista olha para o espelho e se pergunta sobre o que é que ele vai comer, portanto, se ele não fizer espetáculo, ele não vai garantir a própria sobrevivência.

Há uma rede de vidas que se cruzam e de pessoas que se (re)conhecem e que se despedem, momentos que se cultivam, tempos que se disparam, mistérios, coisas que nem entendemos. O Circo se move entre a comida e a fome de cultura das comunidades que, extasiadas assistem as suas apresentações. E é a partir deste paralelismo, e deste limiar, entre a arte e a fome, entre a realidade e a fantasia - de um menino ou de uma menina das periferias e das zonas rurais - que nasce a resistência e o encantamento pela defesa da qualidade de vida.

Há que construir, portanto, uma rede de solidariedade e de apoio sem grandes custos para garantir a sobrevivência de um reduzido grupo de pessoas que se aventura nas estradas de forma livre e mambembe, inventando estórias, ensaiando a vida, diariamente, expondo-se ao que é possível, edificando construções inseguras, irradiando alegria com a máxima de que o ingresso é o sorriso da criança.

 

Francisco Weyl

Porto, 31 de Julho de 2020

FOTO: Dri Trindade

 

Este texto constitui a quarta sessão 

do Microprojeto CRÔNICAS BRAGANTINAS, 

pela via da qual publico narrativas 

memorialísticas autorais neste espaço.

 


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