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A carta que Zenito nunca escreveu


Zenito era um homem de poucas palavras, mas gostava de repetir as suas histórias, narrar cenas em que seus amigos eram fantasmas, pois estavam todos mortos.

Sua vida foi um eterno acumular de perdas. Perdeu dinheiro, posses e propriedades, ficou sem amigos, e, então, escaparam-se-lhe as referências do real. 

Entretanto, Zenito nunca perdeu a fé, mesmo solitário, mesmo depressivo com sua patologia coronária e sua consequente impossibilidade de  trabalhar, acção que o legitimaria à condição de homem honrado.

Os filhos sempre ocupavam um lugar sagrado nas suas orações. A estes, Zenito deixou uma única herança, desesperada: sentir visceralmente os mais íntimos sentimentos, revelando-os, assumindo-os com verdade,

independentemente do que outras pessoas pensem a respeito disso.

Zenito estudou até a 4ª classe e nunca sentou à frente dos filhos para ler um livro de contos ou poemas. Livrou-os, portanto, do fardo do conhecimento.

Sua sabedoria era a de um artista nato, de um homem de extremos, com emoção à flor pele, coragem, sangue e vida.

Poucos dias antes de morrer, Zenito manifestou o desejo de escrever-me uma carta. Era forte mas estava fraco demais para redigir e se recusou a ditar o seu pensamento.

Esta noite no Douro eu escuto o rumor dos pássaros e imagino o desejo que esse velho não realizou porque ele preferiu valorizar o seu senso de humor até nos últimos momentos de sua vida. 

A carta que ele não me escreveu, portanto, foi a sua última piada, uma forma que ele encontrou para me fazer sorrir mesmo depois de sua morte.

Na noite em que Zenito morreu eu sonhei com o seu espírito e isso deixou-me imensamente tranquilo porque eu costumo sonhar com mortos mas tenho consciência absoluta de que os mortos também estão mortos no meu sonho. 

Neste sonho que eu sonhei com Zenito ele não estava vivo mas também não estava morto, pois era espírito. É por isso que sinto que ele não morreu, ele foi elevado.

No sonho, o espírito de Zenito dizia-me para eu ir ter ao quintal da casa e apanhar o pavão e foi o que fiz. Havia três pavões no quintal e lembro-me bem do espírito de Zenito dizer-me para eu agarrar o pavão e não um pavão, portanto, aquele pavão que eu agarrei não era diferente dos outros dois. Os três eram, pois, um só, e qualquer um que eu agarrasse teria a mesma simbologia da fénix renascida.

A carta que Zenito disse querer escrever mas que não  escreveu ou o sonho que eu tive com o seu espírito na noite a seguir a sua morte apenas representam a nossa proximidade espiritual e a imensidão de nosso amor.

Lutei para escrever sobre a morte de Zenito, mas, fracassei: perdi minhas palavras, simplifiquei-as, estou tranquilo para sentir, pensar, escrever e falar sobre a morte de Zenito, entretanto, prefiro ficar em silêncio.

Porto, 30 de Outubro de 2001

Zenito

 


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