Venho da Amazônia com as mãos sujas,
onde o rio aprende a escrever o nome dos que partiram,
onde a chuva é professora de resistência e a lama, um código.
Sou o carpinteiro que aprendeu a serrar o silêncio.
Martelo versos, prego imagens, faço da madeira uma oração.
Trago no peito uma câmara,
uma lente que conhece o cheiro da queimada.
Minha boca sabe dizer “poema” em três sotaques:
o erudito que lê mapas, o popular que toca djambé,
o místico que atende por oferenda.
A pauta chega de gravata; cifras e promessas de papel.
Na cidade, as avenidas foram feitas para quem olha de cima;
nas margens, o povo aprende a medir o futuro em distância.
Belém é altar e depósito: hinos nos salões, fome nas calçadas.
Eles vendem sustentabilidade como perfume —
nós vendemos imagens do que sobrou de sagrado.
Eles batizam projetos,
batizamos crianças com o nome das ilhas que resistem.
Há nomes que queimam: empresas aprendem a fingir penitência,
só para que o dinheiro possa continuar imperando.
Mas há também quem plante festa na vala,
quem escreva uma Carta Climática.
Marambaia faz política com panela e cultura;
faz lei com ofício de rua; inventa repúblicas de afeto.
O cinema é a nossa liturgia.
O take, um sacramento; o corte, uma confissão.
Precisamos de salas que não (en)cobrem a verdade,
de arquivos que sejam raízes, não cofres.
Se a floresta fala, o rio clama
Sou contraditório por profissão:
erudito macumbeiro, cientista benzedeiro
doutor que corta lenha para aquecer quem estuda.
No bolso, livros; no rosto, fuligem;
na mesa, sonhos, comida.
Rezo a Deus e a Exu na mesma prece —
O sagrado e o profano se cruzam num átimo:
a imagem salva e a imagem denuncia.
Escuto a orquestra dos arrivistas: cláusulas, auditorias,
programas de investimento, promessas de trocar chão por praça.
Escuto também o couro do tambor, palavra que não cabe em relatório,
saber que não entra em planilha, ciência de pé no igarapé.
Digo que a justiça climática não se resolve com notas de
rodapé.
Não há meta que valha se o povo for sujeito de sacrifício.
Reparação não é plantio mecânico: é reconstruir memória, casa, nome.
Quem desbota a paisagem também rasga a história.
Faço versos que são cartilhas de insurgência:
“Não há justiça sem quem come o peixe do rio.”
“Cinema é política quando ilumina o rosto do esquecido.”
“Cultura não é ornamento — é rede de socorro.”
E invento teses como quem inventa cânticos de resistência:
uma por uma, como preces pagãs, como estratégias de combate.
Que o fundo do mundo — o tal Fundo Amazônia —
tire a mão da gaveta e ponha o dinheiro nas mãos dos quilombos.
Que os editais não sejam espelhos para os mesmos.
Que haja fórum onde a imagem e a ciência se dêem as mãos.
Que a escola aprenda a filmar a enchente antes de registrar o dano.
Entre a ironia e a fúria, construo um hino:
“Não queremos a misericórdia do mercado; queremos reparação.”
Rimos porque chorar é caro, e a lágrima também tem preço.
Temos de rir alto — é a forma mais resistente de hospedar o luto.
Às vezes sonho:
um rio que sobe e dá aulas de gramática,
uma árvore que desce para dançar com as crianças,
uma fábrica que devolve o nome dos peixes mortos.
São sonhos paradoxais como as melhores teses: possíveis se ousarmos.
A crítica é amável quando é precisa;
por isso eu a faço com afeto cortante:
mostro o rosto do lobo em traje de filantropo,
mas também acendo velas para as que resistem no chão.
Meu poema é jóia de contradição:
erudito que maltrata o latim para abraçar o cordel,
místico que consulta mapa, apaixonado que marca presença em assembleia.
Gosto daquelas linhas que mordem e acariciam ao mesmo tempo.
A Amazônia não é paisagem para postal:
é sujeito que dança, que se organiza, que exige nome.
A floresta não posa: reage.
E quando reage, forma câmera lenta, estoura o enquadramento,
obriga o plano a se curvar diante do canto dos povos.
Digo ao governo em verso:
“Se queres liderar clima, aprende a ouvir quem apanha lama.”
Digo ao capital:
“Teu verde é verniz; nosso verde é sangue e seiva.”
Digo ao mundo:
“Venha ver o que chamam de espetáculo — venha cheirar a cinza.”
Mas não perco o erotismo da esperança.
Há ternura escondida na política de cozinha,
há sedução em uma roda de prosa que ensina a plantar.
Amamos nossos territórios como quem ama corpo: com cuidado e posse.
A maré ensina geografia da coragem;
a raiz, lição de persistência; a fogueira, escola de memória.
Não há dicotomia: a revolta pode ser canção de ninar,
o místico pode calcular a vazão do rio,
o erudito pode aprender a dançar carimbó.
Os antagonismos são minhas ferramentas:
uso ironia como martelo, misticismo como verniz,
rebeldia como cola que segura as peças fraturadas do futuro.
Faço assemblage com termos técnicos e refrões de feira:
“Mitigação” ao lado de “muda a semente, cumpadi.”
E quando acredito que tudo é cômico e trágico ao mesmo
tempo,
ponho a câmera no ombro e vou ao encontro do povo.
Gravo confessionários onde a denúncia se confessa como história;
filmo a feira, a escola, o terreiro.
O arquivo vivo que propomos não é museu de saudade —
é biblioteca de sobrevivência: filmes que funcionam como remédio,
documentos que servem de mapa para sair do labirinto da exploração.
Insisto: filmar é método de cura.
Cortar uma cena é amputar a mentira; montar é costurar outra utopia.
A cada montagem, a possibilidade de outro mundo.
E no fim, quando o dia finda e a cidade engole o que resta
do som,
vou à beira do rio e converso com os mortos que ainda respiram:
“Vocês serão filme, vocês serão poema, vocês serão carta.”
Falo aos ancestrais com a leveza do que sabe que ainda há muito a quebrar.
Falo, mas também escuto como escuto este poema que me falou
e eu o ouvi à beira de um rio.
Peço: juntem-se — cineastas, lavradores, quilombolas,
professores, crianças,
aqueles que sabem guardar sementes e aqueles que guardam senhas.
Formemos uma frente que bata palmas e que quebre cercas,
que escreva cartas, que edite planos, que plante estradas de barro.
Que a arte seja trincheira e o amor, munição;
que a revolução tenha ritmo e o ritmo, compasso.
Que a cultura seja alimento, e a política, cozinha comunitária.
No último plano, deixo uma imagem que não cabe em relatório:
um filme sem cifras, apenas rostos; uma plateia que aponta o dedo e convida;
um rio que, de tanto ser filmado, aprende a sorrir.
E se perguntarem: “O que fazer?” — respondo com uma
filigrana de ação:
escrever cartas, plantar documentos, filmar, rezar, cozinhar ideias.
Porque a ação é verbo que se conjuga com muitos bens: com gente, com chão, com
água.
Resistir é filmar.
Filmar é rezar.
Rezar é trabalhar.
Trabalhar é amar.
Eu sou o Carpinteiro de Poesia: martelo umas letras, prego
outras,
construo um mundo que não cabe nas salas de reunião —
um mundo que cabe na mão de quem segura câmera e panela.
E se minha câmera tiver que ser cruz, que seja cruz que nos
leve para a margem,
para a oficina, para a festa, para o arquivo, para a luta.
Que os versos sejam ferramentas e o poema, mapa de fuga.
Eu termino cantando baixo, como quem planta semente:
“Que a árvore nasça de filme, que o rio escreva em celulose,
que a memória vire ponte e a ponte, estrada para a festa.”
Vem comigo — traz o tambor, traz a lente, traz o pão.
Vamos gravar o tempo até que aprendamos a ouvir o tempo, até que o aprenda a
nos escutar.
— Francisco Weyl, Carpinteiro de Poesia.
06.10.2025
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