Pular para o conteúdo principal

Roteiro das ruas e dos rios: a Marambaia escreve sua Carta Climática

 


a cena ainda está sendo montada. cada logomarca que chega é uma nova tábua que se encaixa na casa que estamos levantando. as mãos se multiplicam, e a madeira respira o esforço de quem constrói junto. no dia primeiro de novembro, a marambaia vai sair às ruas, não para assistir ao espetáculo, mas para afirmar a própria existência.




há dois anos estamos em mobilização, e essa caminhada é também pensamento. tudo começou com encontros pequenos, oficinas, feiras, saraus, exibições de cinema, e a insistência de uma pergunta que não se cala: quem fala pela marambaia quando falam de nós? as obras avançam, a duplicação da rua da marinha áreas verdes, os igarapés das águas cristal seguem feridos, e ninguém foi ouvido. a cidade se transforma, mas a comunidade permanece invisível. então decidimos transformar essa invisibilidade em presença.




é disso que trata o cortejo climático: de dar corpo à consciência. é uma festa da cultura, de quem faz cultura, através da cultura, alcançar a consciência. e por isso o cortejo é protesto, mas como um gesto pedagógico. gesto de quem precisa existir primeiro para depois poder falar. o que faremos no cortejo é isso: existir em movimento, corpo coletivo que enuncia o direito de ser. no território em que habitamos e sonhamos.




a marambaia é um território que encarna a contradição amazônica. um bairro visto como de classe média, mas nascido da pobreza, das ocupações das terras distribuídas às forças militares, exército, marinha e aeronáutica, das lamas das beiras dos canais e das gambiarras. aqui, é onde a precariedade é linguagem. o telhado remendado, a fiação improvisada, e o cinema com celular quebrado — é a matéria da cultura. é onde a imaterialidade pulsa a partir da ancestralidade.




a imagem do oprimido, quando o oprimido ganha consciência de si, ela deixa de ser imagem para se tornar pensamento. e o que fazemos aqui é pensar com as imagens, pensar com o corpo, pensar com a rua. por isso o cortejo é um filme vivo. um roteiro que se escreve enquanto caminha. é também montagem, permanente.




não há direção única. há fluxo. a biblioteca bombom-ler acolherá as crianças; urubu cheiroso e cobra malvina abrirão caminhos com o teatro de bonecos do cuité marambaia; jotabê e paulo guimarães farão a ponte sonora; o cordel do urubu lembrará que a palavra também é instrumento de cura. e quando a procissão seguir pela rua we2, pela travessa sn6, pela rua da marinha e pela sn4, o que se verá não é desfile, é pensamento em ato.




diante da casa do poeta caeté, a performance da ativista Naraguassu indicará as vias pelas quais o ancestral pulsa em nossos territórios e mais adinate, na rua da marinha, mc djay, da Batalha do Cam - projeto do EcoFlow entra em cena com a batalha de rima curta com o tema desmatamento da mata da marinha.




na casa do poeta caeté, na esquina da marinha, haverá estações de pausa e escuta. porque o cortejo é também um processo de escuta. e o sujeito periférico precisa recuperar a escuta de si mesmo antes de ser ouvido pelo outro. a política começa quando o corpo toma consciência da própria imagem e do próprio som.




ao longo desses dois anos de mobilização, vamos construindo a escrita de uma carta climática da marambaia. uma carta de amor e um documento político, denúncia, memória e reivindicação. nela, afirmamos que a crise climática é uma realidade presente nas nossas calçadas rachadas, nas valas a céu aberto, nas escolas precárias, nas casas que alagam. justiça climática não é um termo de conferência, é o direito de viver com dignidade, de poder respirar, de poder permanecer.




a nossa arte traduz o que o discurso técnico não alcança. o cinema, o boi, o teatro, o cordel, o tambor, o boneco. essa pluralidade é epistemologia, mas a querem decorativa. é o modo de pensar do território. é o saber da gambiarra que transforma a falta em invenção, o improviso em método, o erro em estilo.




a marambaia é uma escola sem muros, que ensina ao mundo o que o mundo finge não saber: que não há sustentabilidade sem cultura, que não há futuro sem memória, que não há amazônia sem amazônidas.




a cop30 se aproxima, e belém se prepara para ser vitrine global. mas não queremos ser cenário, queremos ser roteiro. e o cortejo do dia primeiro de novembro é esse gesto simbólico de quem recusa o papel de figurante e assume a autoria de sua própria história.




os coletivos que se somam a esse processo — o ficca, o cineclube casa do poeta caeté, o cordel do urubu, o boi vagalume, o grupo de teatro gemte, o multifário, a arte usina caeté, as escolas palmira lins e república de portugal, os artistas, os poetas, as vacas, os bois, as crianças — são parte de uma mesma paisagem de resistência. cada um traz seu instrumento, sua máscara, sua voz. e o cortejo os reúne como um grande filme coletivo.




não buscamos espetáculo. buscamos sentido. queremos que o cortejo seja um gesto de reconhecimento: que os moradores se olhem, se escutem, se vejam pertencentes. que o poder público perceba que há um pensamento crítico sendo gestado aqui, um pensamento que não depende de editais nem de convites oficiais.




a marambaia não aceita ser objeto de políticas alheias. queremos ser autores das políticas que nos afetam. queremos que nossa carta climática seja reconhecida como documento legítimo de participação popular. queremos que nossas demandas — saneamento, moradia, mobilidade, educação, cultura — deixem de ser promessas e se tornem práticas.




do dia primeiro de novembro, o que ficará é a lembrança de que seguimos em movimento.


Sigamos, filmando sonhos, articulando encontros. a marambaia é oficina, é tela, é casa em construção. e este cortejo, ainda em montagem, é o nosso ensaio geral para um futuro possível.




Carpinteiro de Poesia


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Panacarica: dois Anos sem Rô, mas a eternidade ainda Navega

A água que cai do céu é fina, serena e funda, como quem sabe o que está fazendo. Cada gota que pinga sobre o rio carrega uma ausência. Há ruído de motor ao longe — daqueles pequenos, que levam a vida devagar. Mas hoje ele soa diferente: parece triste. E é. Ele carrega uma notícia que ecoa por entre os igarapés: Romildes se foi.   Amazônia não costuma anunciar luto com alarde. Ela simplesmente se emudece. A várzea fica quieta. A floresta para um pouco. Os pássaros cantam mais baixo. É assim quando vai embora alguém que é raiz, tronco e folha do território. Foi assim quando partiu Romildes Assunção Teles, liderança forjada na beira do rio e na luta coletiva.   Ele não era homem de tribuna nem de terno. Era homem de remo, de rede armada, de panela no fogo e conversa sincera. Era homem de olhar adiante, de palavra pensada, de gesto largo. Era Panacarica. Chovia em Campompema quando recebi a notícia. A chuva, sempre ela, orquestrando silêncios no coração da várzea. Era como se o ri...

Cinema de Guerrilhas volta a Braga para segunda Edição

 Será no dia 26 de março de 2025, na sede da Associação Observalicia, em Braga, a segunda sessão das “Vivências do Cinema de Guerrilha – Resistência Climática”. Organizada por essa associação sem fins lucrativos, dedicada à pesquisa e atuação em alimentação, tecnologia e ecologia social, a ação propõe uma imersão no audiovisual como ferramenta de resistência e transformação social. Vamos continuar a trabalhar juntos na construção coletiva de filmes que denunciem as urgências climáticas e ecológicas atuais. A oficina busca democratizar o acesso ao cinema, utilizando tecnologias acessíveis, como celulares, para que comunidades e indivíduos possam contar suas próprias histórias e fortalecer sua luta ambiental. Como facilitador, trago minha experiência no cinema amazônico, onde venho desenvolvendo pesquisas e produções voltadas para a resistência cultural e ecológica. Como criador e curador do Festival Internacional de Cinema do Caeté (FICCA), sigo explorando as estéticas de guerrilha,...

Cláudio Barradas: Do lugar onde se vê o último Ato

A partida do Cláudio Barradas encerra um ciclo do teatro paraense.   Assim como foi, há cerca de vinte anos, a partida do Luiz Otávio Barata. Entre um e outro adeus, perdemos também muitos outros. Atrizes e atores que, como eu, foram crias desses dois mestres — Cláudio e Luiz Otávio — que, ao lado de Geraldo Salles e Ramon Stergman, compuseram, ali entre meados da década de 1970 e o início da de 1980, um respiro vital para o teatro feito em Belém do Pará. Era um tempo de afirmação. Um tempo em que se confundiam os passos da cena  teatral  com a própria origem da Escola de Teatro da Universidade Federal do Pará. Cláudio foi, sem dúvida, uma escola dentro da escola.   Passar por ele era passar pelo rigor, pela entrega, pela sensibilidade.   E, claro, pelo amor à arte. Os que o tiveram como mestre — nas salas da Escola Técnica, no Teatro do Sesi , mesmo nos ensaios, onde eu ficava à espreita, para aprender, em espaços acadêmicos, institucionais ou alternativos...