DA GAMBIARRA À TERRA: CULTURA, CINEMA E RESISTÊNCIA CLIMÁTICA NAS PERIFERIAS AMAZÔNICAS
[TESES PARA UMA CONTRA-COP AMAZÔNICA, CULTURAL E POPULAR]
- Por Francisco Weyl – Carpinteiro de Poesia
Professor, jornalista, realizador, ativista cultural, diretor do FICCA e Fórum Permanente de Políticas Públicas Periféricas Marambaia COP30 / FICCA
I. INTRODUÇÃO – A COP DO ESPETÁCULO E A TERRA EM TRÂNSITO
A COP30, marcada para Belém do Pará, se anuncia ao mundo como um palco de promessas, metas e acordos, mas por trás dos discursos luminosos há uma engrenagem sombria que movimenta o espetáculo do capital climático.
Desde 2023, quando a capital paraense sediou a Cúpula da Amazônia e proclamou a utópica “Declaração de Belém”, a cortina se ergueu para um grande teatro diplomático onde o enredo central é o mesmo de sempre: o “desenvolvimento sustentável” a serviço das grandes corporações.
As florestas ardem, os rios apodrecem, e as populações originais seguem invisíveis — mas o sistema se maquila de verde.
O neoliberalismo, travestido de ecologia, transformou a crise climática em um negócio.
As COPs, que deveriam ser assembleias de povos, tornaram-se Convenções das Pessoas que Têm Dinheiro, Tecnologia e Poder, onde a Amazônia é cenário e não sujeito.
O palco está armado, mas quem escreve o roteiro são os mesmos de sempre — e os figurantes, somos nós.
Mas a Amazônia não é vitrine.
A Amazônia é corpo, é voz, é cultura, é território de memória.
E por isso, quando o discurso oficial silencia, a periferia fala.
A Marambaia, o bairro que pulsa no coração urbano de Belém, converteu-se num laboratório de resistência climática, onde a cultura, o cinema e a poesia substituem a burocracia e criam uma Contra-COP, feita de saberes populares, ancestralidade e gambiarras criativas.
II. CONJUNTURA GLOBAL – A CRISE CIVILIZATÓRIA E O FASCISMO CLIMÁTICO
Vivemos uma era em que o planeta entrou em colapso e a política tornou-se um espetáculo de cinzas.
O sistema capitalista, em sua fase neoliberal tardia, devora a própria base que o sustenta: a natureza e a vida.
As corporações mineram a floresta, os governos terceirizam suas responsabilidades, e o discurso do “mercado de carbono” substitui a justiça ambiental.
A crise climática, que deveria unir a humanidade, revela as hierarquias coloniais que nunca cessaram: os que produzem o desastre não são os que morrem afogados nele.
O que se vê é um neofascismo climático, um regime global que concentra o poder e distribui o medo: o medo do migrante, do pobre, do negro, do indígena, do diferente.
Os mesmos que poluem agora erguem muros e fronteiras, defendendo um planeta privado.
Enquanto as COPs simulam diálogo, os povos do Sul Global são empurrados para a marginalidade, tratados como “variáveis de impacto” ou “populações vulneráveis”, não como sujeitos históricos.
Mas há insurgências.
Do Sahel africano à Amazônia, do Saara às periferias de Belém, a Terra se levanta em resistências invisíveis.
Esses territórios — ribeirinhos, quilombolas, indígenas, urbanos — forjam uma ecologia popular, um ambientalismo dos oprimidos, que não cabe nos relatórios do IPCC.
Essa resistência não é institucional: é cultural, é espiritual, é política.
A crise não é apenas climática — é civilizatória.
É o colapso de uma racionalidade que transformou tudo em mercadoria: o ar, a água, a vida.
Mas há uma fresta no concreto: a cultura, esse território de reinvenção, onde o humano se reencanta e a Terra volta a ser mãe, não recurso.
Como Carpinteiro de Poesia, afirmo: “Enquanto o mundo negocia o futuro, nós o reinventamos com restos, com palavras, com imagens tremidas que desafiam o silêncio.”
III. CONJUNTURA NACIONAL – O BRASIL ENTRE O DISCURSO VERDE E O EXTRATIVISMO REAL
O Brasil tornou-se, mais uma vez, o epicentro do discurso ambiental mundial.
Fala-se em “liderança verde”, em “potência florestal”, em “desmatamento zero”.
Mas o mesmo Estado que fala em Amazônia viva mantém contratos com mineradoras, hidrelétricas e o agronegócio.
As políticas ambientais convivem com a devastação cotidiana, e as comunidades seguem à margem do “Brasil sustentável”.
Entre 2000 e 2021, o Pará registrou pelo menos 27 acidentes ambientais provocados por grandes empresas — Hydro, Alunorte, Albrás, Imerys, Agropalma, Cargill —, que derramaram óleos, rejeitos e lamas tóxicas sobre o território.
Cada vazamento é um capítulo da tragédia, e cada tragédia, uma prova de que o lucro continua acima da vida.
O país vive o paradoxo da “dupla fala”: celebra a biodiversidade e exporta soja, carne e minério.
Sob a bandeira do progresso, os rios morrem, as cidades afundam, as florestas ardem.
E os povos originários, quilombolas e periféricos seguem sendo as primeiras vítimas e as últimas a serem ouvidas.
O Brasil verde é o mesmo Brasil desigual.
A transição energética, tão aplaudida nas conferências, serve muitas vezes para justificar novas formas de expropriação: parques solares sobre territórios tradicionais, hidrogênio verde sobre zonas pesqueiras, mineração “sustentável” sobre as ruínas das aldeias.
A Amazônia é tratada como colônia energética, e a COP30, como vitrine de um modelo que precisa ser questionado.
Por isso, afirmamos: sem justiça social, não há justiça climática.
Sem reparação histórica, toda política ambiental é simulacro.
IV. CONJUNTURA REGIONAL – AMAZÔNIA PARAENSE E A RESISTÊNCIA DOS TERRITÓRIOS
A Amazônia não é um vazio verde.
É um território vivo, pulsante, habitado por povos, histórias e lutas.
Mas, sob o olhar do capital, ela é tratada como reserva de lucro, depósito de matéria-prima, fronteira de expansão.
O modelo de desenvolvimento predador, denunciado há décadas, avança sobre o corpo da floresta como uma ferida aberta: agronegócio, mineração, hidrelétricas e hidrovias rasgam o solo, contaminam os rios e expelem o povo de sua própria terra.
Na região amazônica do Pará, o racismo ambiental é a face mais cruel desse processo.
Os desabrigados pelas enchentes, os intoxicados pelos metais pesados, os famintos das periferias — são sempre os mesmos corpos racializados, empobrecidos, periféricos, invisibilizados.
Essas vidas, que carregam o peso da desigualdade histórica, são as que pagam o preço da catástrofe climática.
Barcarena, Abaetetuba, Tracuateua, Caeté, Santarém, Marabá: todos têm histórias de destruição e resistência.
Cada vazamento da Hydro, cada derrame da Cargill, cada fuligem sobre o rio é uma cicatriz que nos obriga a olhar de frente o abismo.
E diante dele, ergue-se uma contraofensiva da dignidade — os povos organizados, que reexistem na arte, na solidariedade, na pedagogia popular.
O Fórum Permanente de Políticas Públicas Periféricas Marambaia COP30 é parte dessa insurgência.
Nasceu da recusa em aceitar uma COP “para inglês ver”, e da necessidade de ocupar o centro do debate com vozes e saberes locais.
O Fórum não é apenas um espaço de fala — é um instrumento de ação política, cultural e ambiental.
É um modo de dizer: a Amazônia começa no território, e a política climática precisa começar com o povo.
Da periferia de Belém, a resistência se expande em redes:
cineclubes, saraus, hortas urbanas, bibliotecas comunitárias, rádios livres, pontos de cultura.
Ali, a Amazônia não é floresta distante — é floresta urbana, feita de gente, de igarapés, de casas sobre lama, de crianças que brincam em águas contaminadas, mas ainda brincam.
A Amazônia, aqui, é verbo: resistir.
E resistir é criar.
A arte é nossa trincheira, o cinema é nossa arma, e o corpo é nosso território.
Enquanto as elites negociam “créditos de carbono”, os povos produzem créditos de consciência.
E essa consciência é o bem mais raro de nosso tempo.
V. CONJUNTURA LOCAL – MARAMBAIA COMO LABORATÓRIO DE CIDADANIA CLIMÁTICA
A Marambaia, bairro periférico de Belém do Pará, é mais do que uma geografia.
É um símbolo político, um território de memória e invenção.
Com suas florestas, canais e praças, a Marambaia é um microcosmo da Amazônia urbana — onde o descaso público encontra a criatividade popular, e a precariedade se transforma em potência.
Foi nesse território que surgiu o Fórum Permanente de Políticas Públicas Periféricas Marambaia COP30, um espaço autônomo de organização social, nascido da feira artesanal, dos saraus, dos encontros comunitários e do cinema de guerrilha.
O Fórum é a síntese de uma pedagogia coletiva, que une educação, arte e política sob o signo da resistência.
“Na Marambaia, tudo é gambiarra: o telhado remendado, a fiação improvisada, o projetor adaptado. Mas essa gambiarra não é falta: é invenção. É a inteligência popular que transforma a falta em caminho.”
Esse princípio – o da poética da gambiarra – estrutura todo o fazer cultural e ambiental da Marambaia.
Lá, um lençol branco vira tela, um celular quebrado vira câmera, uma praça vira universidade popular.
E o que se produz nesses espaços é ciência popular: dados, relatos, imagens, memórias — tudo o que o mundo precisa conhecer para compreender a verdadeira dimensão da crise.
A Carta Climática da Marambaia, documento político em construção, é o fruto mais visível dessa organização.
Ela propõe políticas públicas de base territorial, defende justiça ambiental, reparação histórica e o direito à cidade e à floresta.
Mas mais do que um texto, é um pacto entre corpos e consciências.
Seu preâmbulo é claro: “A crise climática não é futura, é presente em nossas ruas, casas e corpos.”
Entre seus princípios orientadores estão:
* interseccionalidade, para reconhecer vulnerabilidades específicas;
* interculturalidade e ancestralidade, para valorizar saberes tradicionais;
* cuidado e bem viver, como forma de reencantar o território;
* autonomia e protagonismo popular, para garantir participação real;
* justiça ambiental e reparação, como essência da ação climática.
A Marambaia não espera a COP30: ela a antecipa.
Organiza debates, filmes, encontros, forma juventudes e produz pensamento crítico.
Cada atividade – do sarau ao cineclube – é uma assembleia cidadã.
Cada projeção – um ato de denúncia e de esperança.
O Festival Internacional de Cinema do Caeté (FICCA - 10 anos) é parte central desse movimento.
Ele transforma o cinema em instrumento de consciência, o audiovisual em ferramenta pedagógica, e o território em sala de aula.
Ali se formam jovens, poetas, cineastas e pensadores populares.
Ali se forja um novo modo de fazer política: o cinema como pedagogia libertária.
A Marambaia é, portanto, um laboratório de cidadania climática.
Um espaço que articula o global e o local, o poético e o político, o ancestral e o contemporâneo.
Um território onde a cultura é resistência e a resistência é projeto de futuro.
“Não há justiça climática sem cultura. A cultura é a ferramenta de luta dos povos que se recusam a desaparecer.”
VI. CINEMA SOCIAL E POÉTICAS DA GAMBIARRA – ESTÉTICAS DA SOBREVIVÊNCIA, POLÍTICAS DA IMAGEM
Há quem diga que o cinema é a arte da luz.
Mas, na Amazônia, o cinema nasce da escuridão — dos becos, dos alagados, dos fios desencapados, dos olhos que não aparecem nas telas globais.
O cinema da periferia é feito de retalhos e coragem: uma estética da sobrevivência.
Desde o início da tua militância, Francisco, o cinema foi mais que linguagem — foi ferramenta de insurgência.
Do filme #FORACARGILL, que denuncia a destruição ambiental e a hipocrisia das corporações, às oficinas com jovens vulneráveis nas periferias de Belém, tua obra transformou o ato de filmar num ato de libertar.
“Fazemos poesia com resto de papel, cinema com celular quebrado, música com lata e tambor. Nossa imagem é tremida, é escura, é barulhenta — mas é verdadeira.”
Essa poética da gambiarra é mais que estética: é política.
Ela nasce da precariedade, mas a transforma em invenção.
Nas favelas e nos igarapés, onde o Estado falha e o mercado não chega, surge a tecnologia do possível: a câmera emprestada, o lençol como tela, a caixa de som compartilhada.
É nesse gesto de coletividade que se constrói o cinema social amazônico — um cinema que não espera edital, que não teme a falta, e que faz do improviso um método de criação.
Esse cinema não busca prêmios; busca consciência.
Não fala sobre o povo, fala com o povo.
É o cinema que transforma espectadores em sujeitos, a imagem em espelho e a arte em ferramenta de transformação.
Em cada oficina, cada projeção, cada sarau, o cinema de guerrilha forma uma geração de jovens críticos, criativos, afetivos — formação política pela imagem e pela experiência.
Esses jovens aprendem a filmar, mas também a pensar, a escrever, a organizar, a resistir.
A câmera vira um instrumento de pesquisa, a tela, um espaço de debate, e o filme, um ato pedagógico.
O FICCA – Festival Internacional de Cinema do Caeté é a expressão maior dessa pedagogia visual.
Ao longo de uma década, o festival se consolidou como plataforma de denúncia e diálogo: exibe filmes que o mercado ignora, promove intercâmbios entre territórios, conecta Amazônia, Norte, África e Portugal — e mostra que o cinema pode ser, sim, uma ferramenta de geopolítica popular.
O cinema social amazônico não é apêndice da cultura: é um projeto político de libertação.
Ele restitui à periferia o direito de se ver e se dizer, de existir fora do enquadramento colonial.
Por isso, cada filme é um gesto de descolonização.
Cada câmera é uma semente.
E cada jovem que pega uma câmera na mão é uma nova floresta que começa a crescer.
VII. PROPOSTAS POLÍTICO-CULTURAIS E PEDAGÓGICAS – PARA UMA DEMOCRACIA CLIMÁTICA DE BASE
A luta pela justiça climática é também uma luta pela democratização do saber, da cultura e da comunicação.
A seguir, apresento — em nome do Fórum Permanente de Políticas Públicas Periféricas Marambaia COP30 e do FICCA — um conjunto de propostas político-culturais e pedagógica, enraizadas no território, mas com alcance planetário.
Educação ambiental popular e comunitária
* Criação de Centros de Formação Ambiental Popular nas periferias, integrando arte, ciência, ancestralidade e tecnologias sustentáveis.
* Parcerias com escolas, universidades e coletivos locais para desenvolver currículos que contemplem a ecologia política, o racismo ambiental e o bem viver amazônico.
* Oficinas de formação de educadores populares, com foco na juventude periférica e ribeirinha.
Cinema social e redes de audiovisual comunitário
* Implantar cineclubes climáticos , com acervos educativos e sessões regulares.
* Apoiar a produção de filmes comunitários e documentários ambientais, feitos por jovens, com distribuição livre.
* Criar o Arquivo Audiovisual da Amazônia Periférica, como acervo público e pedagógico.
* Promover mostras itinerantes nas escolas, associações e praças.
Cultura e comunicação como políticas de Estado
* Instituir Fundos Periféricos de Cultura Climática, com gestão participativa e territorial.
* Reconhecer oficialmente os pontos e coletivos de cultura ambiental, como o FICCA, a Casa do Poeta Caeté, o Cordel do Urubu e o POMAR, como polos de educação cidadã.
* Garantir recursos permanentes para ações culturais que integrem arte, ecologia e direitos humanos.
Juventude e tecnologias do possível
* Criar o Programa Juventude Climática da Marambaia, voltado à formação em audiovisual, agroecologia e comunicação comunitária.
* Estimular o uso de tecnologias acessíveis — celulares, aplicativos, softwares livres — como ferramentas de denúncia e criação.
* Estabelecer redes solidárias de mentoria entre artistas, cientistas e educadores populares.
Economia solidária e cultura do bem viver
* Apoiar cooperativas culturais e ambientais voltadas à reciclagem criativa, hortas urbanas, produção artesanal e agroecologia.
* Incentivar o consumo local e sustentável, priorizando mulheres, quilombolas, indígenas e juventudes periféricas.
* Desenvolver políticas de economia criativa comunitária, com base nos princípios da autogestão e da solidariedade.
Articulação para uma Contra-COP Amazônica
* Realizar, paralelamente à COP30, a Contra-COP da Marambaia, evento autônomo que reúna coletivos periféricos, artistas, educadores, quilombolas e indígenas.
* Publicar a Carta Climática da Marambaia como documento político-técnico de referência.
* Estabelecer uma rede latino-amazônica de cultura e resistência climática, conectando periferias urbanas e territórios tradicionais.
* Criar um observatório popular da COP30, com transmissões comunitárias, cobertura independente e produção de dados cidadanizados.
VIII. CONCLUSÃO – POR UMA CONTRA-COP AMAZÔNICA, CULTURAL E POPULAR
A COP30 tentará transformar Belém em vitrine global da sustentabilidade.
Mas nós — poetas, cineastas, professores, catadores, quilombolas, ribeirinhos, juventudes — não aceitamos ser figurantes.
Queremos ser autores.
E por isso, da Marambaia, nasce uma Contra-COP Amazônica: um movimento que não nega o diálogo global, mas o reinventa a partir do chão, da gambiarra, da cultura e da solidariedade.
A crise climática é a prova de que o sistema chegou ao fim.
Mas também é o início de outra história: a do reencontro entre humanidade e natureza.
Não há futuro climático sem justiça social, sem cultura, sem território.
A Amazônia não é a última fronteira: é a primeira escola do mundo.
“A Terra não é uma mercadoria, é uma mãe ferida. E nós, seus filhos e filhas, a curaremos com cinema, poesia e rebeldia.”
Esta tese é roteiro de ação e de sonho.
É mapa para as juventudes que ainda acreditam na força do coletivo.
E é também convite: que cada território amazônico construa sua própria Carta Climática, sua própria rede, seu próprio festival.
Porque a justiça climática só existirá quando as periferias forem ouvidas — e quando as culturas locais forem reconhecidas como ciência, filosofia e poder.
Que a COP30 seja lembrada não pelos discursos oficiais, mas pela insurreição cultural que brotou da Marambaia.
E que a gambiarra continue a ser nossa utopia em construção.
Francisco Weyl – Carpinteiro de Poesia
Jornalista, cineasta, ativista cultural e coordenador do Fórum Permanente de Políticas Públicas Periféricas Marambaia COP30 / FICCA
Belém do Pará, outubro de 2025

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