A água que cai do céu é fina, serena e funda, como quem sabe o que está fazendo. Cada gota que pinga sobre o rio carrega uma ausência. Há ruído de motor ao longe — daqueles pequenos, que levam a vida devagar. Mas hoje ele soa diferente: parece triste. E é. Ele carrega uma notícia que ecoa por entre os igarapés: Romildes se foi.
Amazônia não costuma anunciar luto com alarde. Ela simplesmente se emudece. A várzea fica quieta. A floresta para um pouco. Os pássaros cantam mais baixo. É assim quando vai embora alguém que é raiz, tronco e folha do território. Foi assim quando partiu Romildes Assunção Teles, liderança forjada na beira do rio e na luta coletiva.
Ele não era homem de tribuna nem de terno. Era homem de remo, de rede armada, de panela no fogo e conversa sincera. Era homem de olhar adiante, de palavra pensada, de gesto largo. Era Panacarica.
Chovia em Campompema quando recebi a notícia.
A chuva, sempre ela, orquestrando silêncios no coração da várzea.
Era como se o rio chorasse também — ou talvez fosse só o motor do barco, ao longe, soluçando seu ruído de tristeza.
Romildes Assunção Teles havia partido.
E naquele instante, o mundo pareceu menor.
Panacarica: palavra ancestral, chapéu de palha na língua caribe. Nome de um barco e de um centro cultural. Nome que virou conceito de vida. Rô viveu nele e por ele. Ali resistiu, acolheu, alimentou, costurou sonhos. Daquele casco feito à mão, ele articulou movimentos, debates, festas, reuniões, filmes e esperanças. Não era só um barco. Era um território. Um símbolo. Era casa, trincheira e altar.
E ainda é.
Dias antes de atravessar o grande rio da vida, Rô deu sua bênção: autorizou que eu contasse sua história em filme. E assim nasce Panacarica, documentário de vinte minutos, uma travessia cinematográfica por sua memória e obra. Porque sim, Romildes sabia que sua vida merecia ser contada – e não por vaidade, mas por dever. Porque sua história é a história de muitos. E precisa continuar navegando.
Mas como traduzir Romildes em película?
Como conter em moldura tão estreita a vastidão de sua luta?
Ele que era neto de escravizados fugidos dos engenhos de açúcar de Muaná, e que atravessaram a baía do Pará num batelão em busca de liberdade.
Rô não era apenas um amigo.
Era farol em noite escura, era raiz em solo encharcado, era pássaro que não voava sozinho — levava com ele os sonhos de muitos.
Com ele aprendi que há gente que vive como território: não se passa por ela impunemente.
É preciso respeito, escuta, reverência.
Hoje, 27 de maio de 2025, fazem dois anos que Romildes Assunção Teles partiu.
Dois anos em que o tempo, esse velho canoeiro das lembranças, insiste em remar contra o esquecimento.
E quanto mais a ausência dele parece crescer, mais sua presença se infiltra em tudo: na madeira do barco, no cheiro da chuva da várzea, no barro espesso das margens, no silêncio das redes balançando ao entardecer.
Em vida, Rô foi firme contra os que ameaçam a floresta. Enfrentou projetos devastadores como o da Cargill, cuja denúncia estampamos no documentário #ForaCargill. Ali, ele brilhou não na frente das câmeras, mas nos bastidores, articulando lideranças, unindo vozes, costurando territórios como se fossem redes. Costurou como quem sabe que a luta se vence com afeto e estratégia. Com verdade.
Romildes não foi apenas um ativista. Foi um pedagogo da terra. Um educador dos ventos e das águas. Um organizador de mundos. Ele compreendia que a Amazônia não se defende só com dados ou processos, mas com memória, com presença, com pertencimento. Seus saberes eram orais, mas seus feitos são concretos.
E é por isso que ainda o sentimos aqui. A morte, no caso de Rô, não tem o poder do esquecimento.
Eu escrevi um poema no dia em que ele partiu. Não consegui fazer mais que isso. A dor me veio como chuva repentina — não dessas que assustam, mas daquelas que banham por inteiro:
Chove no Campompema
A várzea emudece
E o motor do barco
Ao longe tem um ruído de tristeza
As lágrimas vertidas nas águas
Trazem ao Rio os peixes famintos
Da vida que se expia
Por volta do meio-dia
Meu velho amigo me deixou
Deixou Panacarica
E a Dona Isabel
Numa casa que ele abriu
Para me dar de comer
Atei minha rede por cima do palco
Protegido da chuva pela lona escura
Pensei que a amizade
É dos amores o maior
Pelo desinteresse e gentileza
Um abraço apertado
Em seu corpo acolhedor
O aperto firme de mão
Observar sua atenção
Através de seus gestos e palavras
Esse cabra que era um guerreiro
Um ser humano inspirador
Pela sua experiência política
E sua luta pela comunidade
Uma tristeza, amigo, a sua partida
Fica a conversa à mesa da cozinha
O diálogo nas travessias até as ilhas
A tua expressão sincera
De quem sempre olhou adiante
Com um passo adiante
Para seguir esta missão
De fazer o bem aos seus
Sua esposa e filhas e filhos e netas e netos
Aos amigos de verdade
Tu que por determinação sempre foste verdadeiro
A analisar e encaminhar o movimento social
Dos ribeirinhos e dos quilombolas
Dos pescadores e dos agricultores
Grande Rô, tu é Grande
Uma saudade sem fim
Carpinteiro de Poesia
27.05.2023
Dois anos.
Mas a força de Romildes segue nos guiando.
Porque há partidas que não são fim — são travessia.
As palavras vieram como quem chega à beira do rio e acende uma vela. Era o mínimo que eu podia fazer. Era um jeito de amarrar a rede, proteger da chuva e lembrar que a amizade é dos amores o maior — porque nasce da escolha e do cuidado.
Hoje, enquanto o filme Panacarica ganha forma, percebo que ele não é apenas um registro. É um rito. É um compromisso. É a minha forma de honrar o guerreiro que partiu, mas deixou rastros claros. Sua voz ainda ecoa nas conversas à mesa, nas travessias às ilhas, nas reuniões que resistem em varandas de madeira.
Rô foi neto de escravizados. Herdeiro de uma história que cruzou baías fugindo da opressão. Rô foi semente, mas também flor e fruto. Construiu em vida o que muitos só tentam fazer em teoria: uma rede viva, pulsante, comunitária. Panacarica é essa rede. Viva ela segue.
E assim, deixo este registro não como adeus, mas como retribuição.
Romildes Assunção Teles vive.
Na memória da floresta.
Na luta dos povos das águas.
No casco do barco que virou eternidade.
Francisco Weyl
Amazônia, 27 de maio de 2025
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