Manoel Alves já vendeu muito mais de uma tonelada de atum.
Há vinte anos em Cabo Verde ficou bastante conhecido pelo restaurante "Casinha Velha", perto da Capela, na Atchada Riba - Atchd'Santanton (com licença poética do meu Brasi-kryolo).
Cá, na cidade da Praia, do meu tempo eram muitos restaurantes com o nome casa, aliás , "Casa Nova", onde comia cavala fumada feita por um português que era dono deste restaurante e cujo nome não recordo, pra variar, e a "Casa Bela" , que eu acho que era do
Baluka e do Cesar, e que reunia a nata da malandragem, gente do bem, poetas, fotógrafos, realizadores , intelectuais , jornalistas , arquitetos, artistas plásticos e os cabeças meus amigos .
São tantas as casas mas eu, nômade que sou , contento-me em não carregar muitos objetos, porque a minha alma já pesa demasiado, com todos estes sentimentos e estas energias .
Mas - voltando à "Casinha Velha" , ela nem existe mais, embora o lugar ainda seja o mesmo.
O seu Manoel Alves, entretanto, continua a vender barriga de atum, na Atchada Meio, que é a Achada de Santo Antônio, mas - agora , há coisa de cinco anos, quando ele inaugurou um novo restaurante chamado "Grelha".
Com dois mil escudos cabo-verdianos (cujo câmbio indexado ao Euro custa vinte euros, em torno de R$ 60 reais, portanto), come-se um prato que dá para uma ou até para duas pessoas desde que saibam dividir, claro.
O atum, a barriga de atum, vem num espeto que faz gosto de ver, parece publicidade de comida , só que é real, é um cheiro à grelha fabuloso.
E nesta atmosfera sinestésica praticamente mantemos uma relação sexual preliminar só para aumentar o desejo. Além dos atuns , as batatas também grelhadas . São cerca de seis pequenas batatas contornando o espeto com cerca de quatro bons nacos de carne de peixe.
Depois de todo este namoro vamos à comida . Umas três cervejas e o café . A música ao fundo claro que é a morna. Nessa noite (26/11) havia apenas um casal na parte interna e um cidadão amigo do proprietário na parte externa que fica mais próxima à grelha que é - como na antiga "Casinha Velha" - a primeira coisa que se vê. Sim, porque quando se adentra ao espaço do restaurante, fala-se imediatamente com Seu Manoel e pede-se logo o que se quer é só depois então é que se senta.
Lá dentro quem me fez companhia foi uma planta a qual não lhe perguntei o nome mas ficamos a nós sentir enquanto eu desgastava deste prazer que há muito me falava.
Pago a conta e faço as poses com Seu Manoel e me despeço mas resolvo caminhar da Atchada até ao Alquimista que fica lá abaixo , na praia de Kebra Kanela, contornando a estrada ladeira abaixo, fazendo registros com o celular e quase levitando.
Na descida recordo do casal de amigos proprietários , Damiano e Morena, com os quais não encontro e então me sento na esplanada para olhar o mar, sozinho, a pensar e a escrever, quando sou abordado por uma pessoa que havia assistido a minha fala sobre Cineclube de guerrilha .
Súbito sou conduzido a uma mesa de seus amigos que me festejam e em meio ao som a tocar e o mar a marulhar e as falas e os sorrisos esqueci-me da noite e da escrita , desocupando-me dos pensamentos .
Foi uma noite das antigas .
Solitariamente das antigas .
Ainda esta manhã (27/11) falei a jovens universitários e os citei a metáfora da passagem bíblica, quando Jesus vai solitário ao deserto e é desafiado por Satanás, este anjo decaído.
Porque todos temos este deserto em nós, ainda que acompanhados dos amigos, estamos no deserto da condição humana e sempre por esta condição desafiados .
© Carpinteiro
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