A última vez que vi a minha mãe Olhei-a nos olhos e a senti na alma Já não podia dizer-lhe mais nada Havia entre nós dois qualquer coisa de silêncio O mesmo silêncio que separa-nos dos anos Que nos conduzem à morte A última vez que vi a minha mãe Foi como se não a visse Porque ela já não era mais ela E eu já era mais eu Éramos dois corpos A ocupar o mesmo lugar naquele espaço Naquela casa em que moramos por longos anos Naquele bairro da periferia de Belém do Pará A Marambaia periferia do Brasil Periferia do mundo Periférico de nós dois, eu e minha mãe A última vez que vi a minha mãe Disse-lhe pela última vez Que eu iria viajar mais uma vez Ela pousou as mãos sobre a minha cabeça Ofereceu-se-me Através de si as benções de Deus E ficamos em silêncio Eu de olhos fechados sobre o seu colo Ela com os olhos fixos nas paredes Os mesmos olhos da avó cega Que lhe ensinou a ler e a escrever Olhos de Tirésias Míticos e proféticos Como o é esta história que vivemos Naquela tarde de quinta-feira Eu e minha mãe naquela varanda Em que estivemos em outras tardes Reunidos com a família A mesma família que morre Aos poucos com a morte da mãe Mas a vida é morte e renascimento Como bom cristão que sou Ainda guardo aquela benção E por vezes choro a sua falta © Carpinteiro Cidade da Praia, Cabo Verde, 10/10/05 (FOTO © Dica Weyl)
(...)
O beija-flor
Há pessoas que mal olho e logo quero beijá-las.
E outras que eu desejo mas nem as vejo.
Há pessoas cegas, e eu, Tirésias.
Pessoas para as quais eu nem dirijo o meu olhar,
e delas sinto o sentimento que lhes move escapar.
Conheço pessoas
que andam para todos os lugares
mas que são parasitas, na verdade.
E andarilhos,
que nunca foram a lugar nenhum.
Há
nômadas demasiados nesta Babilônia.
Gentes
que se deslocam nas sombras
de
seus universos paralelos.
Mas
há passantes que são como o Sol,
com
a sua Luz radiante, a arrastar os planetas.
E
transeuntes a cair nos buracos obscuros.
Estrelas,
que de manhã acendem
e
não se apagam, no crepúsculo.
Corpos
que se afetam com efêmeras estéticas.
Espíritos
lunares, tempestuosos mares,
e
naus, à deriva.
Há
poetas errantes e solitários amantes.
E
silêncios,
que
ecoam em cavernas primevas.
Figuras
rupestres, pixos.
Bichos
domésticos, seres humanos enjaulados.
Selvagens
contidos, psicopatas, disfarçados.
Conheço
monges rockeiros e estranhos romeiros.
Almas
livres, pássaros abatidos.
Espécies
extintas, pessoas comuns.
Geografias
sem mapas, territórios fechados.
Há
feirantes e arqueólogos,
operários
e sommeliers,
alpinistas
e cadeirantes,
corretores
e vendedores de flores de cemitérios.
Pessoas
diferentes mas tão semelhantes.
E
todos os tipos de artistas,
que
não sabem quem ou o que são,
se
cães ou vassalos, soldados ou farsantes.
Enquanto
isso, um beija-flor se aproxima à janela de meu quarto.
“Do
meu quarto de um milhão de quartos do mundo”.
E,
ao vê-lo, no pulsar de seu coração,
Sinto-me
um Álvaro de Campos,
a
olhar o lírio-do-bosque.
Porque
há mais metafísicas no mundo do que chocolates,
que, afinal, é o último vício que me resta
além do poema.
(...)
Oração de Omolu Obaluaê
Encontrei pedra lascada do tempo do avô, Toda ela bexigada, era de Omulu, sim, senhor. No caminho tinha velame, senza e palha, tinha epó... Cruzei com almas santas, me benzi – salve atotô! Senti frio e senti fome, dormência me abraçou, Mil anos correram breves, minutos que não passou. A morte virou vida e a vida se renovou. Cajado batia a terra, era de Omolu, sim, senhor. Salve, Lázaro! Salve, Roque! Salve quem muito viveu. Xaxará abriu caminho, o sol até se escondeu. A peste que era praga agonizava e gemia, Na multidão que sofria aos pés desse Senhor. Omolu, velho cansado, das dores do mundo cruel, Enlaça a vida na morte e a morte é ponte pro céu. Na lavoura da provação, quem semeia semente pura. Do velho recebe a cura e se purifica na dor.(Leitura e montagem do Carpinteiro de Poesia)
(DOMÍNIO PÚBLICO)
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