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CRÔNICAS BRAGANTINAS: Personagens e maravilhas de Bragança do Pará

 

Venho das comunidades periféricas, tendo crescido entre meninas e meninos pobres dos bairros da Pedreira e da Marambaia, depois que meus pais se deslocaram pela antiga estrada de ferro, da então distante Bragança do Pará até a capital Belém, em consequência da crise que afetara fortemente a economia de uma grande família de nove filhos, que precisaram trabalhar, enquanto estudavam, para garantir o sustento da casa.

E os antepassados, enterrados em Tentugal, Açaiteua, Viseu e Bragança, também vieram com as memórias dos tempos de outrora, que meus pais gostavam de recordar, quando reuníamos à volta da mesa da sala de jantar, onde nem sempre havia comida, entretanto, um profundo sentimento de comunhão, que se enraizou nos Weyl desde então, e ainda hoje os faz reunir em irmandade, nas casas dos irmãos, onde são bem vindos os amigos queridos.

Esta trajetória periférica e nômada marcou minha vida, de forma que sempre a honrei em meu percurso existencial, a ponto de assumir uma postura de combate e de resistência em favor das pessoas mais pobres, cuja história, por mim afirmada, faz-se presente, muito mais nos becos, mercados e feiras, do que em escolas e museus, razão pela qual hoje escrevo esta crônica, de caráter memorialístico, para homenagear alguns personagens que povoaram parte de minha infância e adolescência em Bragança do Pará.


Mas, quando escrevemos uma crônica, muitas vezes corremos o risco de desviar o caminho temático ao qual desejamos percorrer, porque as memórias também nos traem, e porque algumas histórias se misturam com estórias que criamos, e delas apenas ouvimos falar, o que também potencializa a criatividade do cronista, que vê nascer uma nova crônica, enquanto ainda está a fazer uma trilha em direção ao tema sobre o qual deseja escrever.

E assim sendo, alguns fatos e personagens saltam espontaneamente no decorrer da escrita, como se quisessem assumir o protagonismo da narrativa, tomando um lugar que parecia secundário, e que, súbito se torna prioritário, pelo que o cronista é desafiado a dar as diretrizes à crônica, ao mesmo tempo em que negocia com ela uma forma de mediação de cenas e falas que ocupam grau de importância, mas que podem ser tratados mais adiante, ou, em uma nova crônica.

O caso desta crônica de hoje é exemplar para o que me proponho e tenho me proposto, primeiro porque, além de poeta, jornalista e realizador de cinema, sou um antropólogo de imagens, e dos imaginários, um ouvinte e estudioso de causos, e um dedicado amante de seres humanos que fazem história à margem da sociedade, com uma pulsação e pujança incomum, porque se reinventam a si próprios, mesmo nos momentos mais difíceis e diante das mais duras adversidades, razão pela qual eu me projeto nessas pessoas, porque de certa forma eu me identifico com elas.

Na crônica de hoje eu vou citar mais de uma dezena de personagens que povoam e povoaram os imaginários dos cidadãos bragantinos, desde os anos 1960 até meados da década de 1980, quando caíram na zona do esquecimento, e perderam vigor que seus feitos causavam naquela eterna juventude, desses tempos idos, entretanto, são pessoas reais que se tornaram lendas, a despeito de Bragança e da Região dos Caetés possuir um universo imaginário demasiado rico, sobre o qual esta crônica não se debruçará.


Um dos espaços mais potentes de minha memória é a minha própria família e os meus amigos, aos quais recorro, sempre que me proponho à escrita destas crônicas memorialísticas, o que significa que as narrativas que se processam são entremeadas destas falas, destas pessoas, e, portanto, de suas memórias, que as tomo como se fossem minhas, sendo, algumas delas, eivadas de pensamentos e momentos que eu próprio vivi, como os medos que eu tinha do Bagacinho, e do Mete Medo, e das fantasias que eu imaginava do Pedro Nolasco, ou Nolasca, já nem, lembro direito, se o artigo final é masculino ou feminino, embora, esta definição seja, no caso do Pedro, absolutamente irrelevante, e isso eu explicarei logo a seguir porque eu vou falar primeiro do Bagacinho.

Bagacinho era um mendigo que circulava e habitava o bairro da Aldeia, ali pelas proximidades do Cruzeiro, que fica diante da feira, sendo conhecido da criançada, que não o deixava em paz, e praticava com ele o que hoje chamaríamos de bullyng, porque ele fazia uma coisa para nós muito estranha, e que era capturar e comer saúvas, arranjando, antes, alguns pedaços de pau para lenha à pequena fogueira que ele fazia, onde improvisava latas em que depositava os insetos comestíveis, instalando-se debaixo de algumas frondosas mangueiras que compunham aquele belo túnel de árvores da Aldeia, mas que foi criminosamente derrubado pelo prefeito Zebu, na década de 1970.

 E estas formigas similares a saúvas, com asas, apareciam de todo o lado, logo depois da chuva, em dias quentes, e eu não tinha a menor ideia de que estas içás eram nutritivas e proteicas, sendo ricas em vitaminas do complexo B, ferro e cálcio, e que elas voavam feito loucas porque era o período do acasalamento delas, entretanto, o Bagacinho as saboreava em suas refeições, enquanto passávamos por ele, a correr, chamando-o bem alto pelo nome “Bagacinho”, que ainda escuto perfeitamente, no que ele se levantava, a correr atrás de nós, a gritar: “Filho duma ffffuuuuudeedeeeiiiira”, que era uma espécie de slogan com o qual nos ofendia a nós e nossas pobres mães, mas que afinal gostávamos de ouvir, porque sabíamos que o incomodávamos, e dessa forma estabelecíamos com ele uma relação em certo sentido preconceituosa e abusiva.


Outra figura lendária do bairro da Aldeia era o Pedro Nolasco (ou Nolasca), que era um pescador, maduro, que costumava sair para pescar, de anzol ou com malhadeira, nas noites de lua cheia, pelo Rio Caeté, alimentando sonhos e fantasias de muitos pais e de meninos e até de meninas, que falavam que Pedro gostava de homem, e que ele sempre tinha um jovem como companhia nessas pescarias, que por ele era introduzido aos prazeres do amor proibido, num misto imaginário de Boto e Yara, porque os jovens se encantavam com o velho pescador, sendo estes fatos ocorridos numa pequena cidade, à altura da década de 1960, quando a ditadura cerceava todos os tipos de liberdades, e a sexualidade juvenil rebentava como broto, em narrativas e fantasias, o que não deixava de ser resistência, considerando que Bragança tem hoje uma forte presença da comunidade trans, homossexual.

Mas, uma das personagens mais folclóricas de Bragança do Pará, sobre a qual muitos falam e têm muitas histórias e estórias para contar é João Mota, ex-prefeito do Município, que deixou uma marca para além de política em sua gestão, inclusive com a atribuição de causos a este personagem que talvez ele nem tenha vivido, mas, dada a sua fama, que era grande, acabou por ficar registrado como se fosse com ele, que era desconfiado e irreverente por excelência, sendo, que, de acordo com o cantor e compositor Evandro Mesquita, também ele, personagem de Bragança do Pará, uma das máximas preferidas de João Mota, que ele dizia naturalmente em reuniões administrativas ou sociais, era que, para o enrabar, o caboclo tinha que ter pau de ferro, causando vergonha em seus convivas.

Quando este cronista decidiu escrever esta crônica, ele recorreu aos familiares e amigos, que o ajudaram a reinventar e inventariar alguns personagens e fatos aqui descritos, entretanto, antes de transcrever uma extensa lista de personagens de cujas histórias e estórias ainda estou a procura, para dar prosseguimento a este projeto das Crônicas Bragantinas, preciso reverenciar e referenciar o amigo e dramaturgo Aviz de Castro, sem dúvida, um dos maiores declamadores, e contadores de estórias do Município de Bragança do Pará, assim como ao pesquisador José Ribamar de Oliveira, sendo, ambos, fontes inesgotáveis das memórias da Região dos Caetés.

Como lhes disse, escrever uma crônica é muito perigoso porque podemos nos desviar dos caminhos aos quais decidimos percorrer a partida e que a motivaram, a ponto de até ter pensado em escrever uma crônica sobre o ato de escrever a crônica, enquanto a escrevo, e falar das nuances que  (se) nos ocorrem ao (d)escrevê-la, como se ela própria, a crônica, necessitasse comunicar ao leitor as razões que a levaram a tomar estes atalhos, ou fazer estas curvas, para não deslizar em outra direção, e descambar ali adiante, como se, ao contrário de ser um meio, ela fosse já o fim em si mesmo, ou ambos, numa supressão do receptor pela mensagem, e consequentemente, numa anulação do emissor, tornando-se, finalmente, enquanto objeto-signo, a essência em si mesma do texto, a escrita-crônica.

Mas, esta crônica há de encerrar da forma que lhes havia prometido, com uma citação de alguns personagens que marcam e marcaram Bragança do Pará, enquanto ainda tento seduzir o leitor a rememoriar fatos e personagens, e se desejarem, enviando-me textos ou áudios a partir de suas lembranças, para que estas narrativas saiam das memórias e das falas para a escritura textual.

Seguem, portanto, os nomes dos personagens: Bagacinho, Pedro Nolasco(a), Japaca, João Mota, Rolinha, Mete Medo, Gato Seco, Bacurau, Sete Capa, Bulanda. Marcapasso, Baby, Paloma, Três Cruzeiro, Emídio, Caruru, Bonito, Macho da Mãe, Quebra osso, Coro Grosso (ele é a burra dele), Pará grande, Peixe-pau, Maria de Barro, Bibio, Paulinho da Vila Sinhá, Marcelo do carinho de mão, Mirixo, Pamonha, Padilha, Tonga, Kajibira, Tá cagado, Cafifa, Nosso, Mestre Ari das rabecas, Dario cariru, Fanta, Esmelinda, João Guilherme do Morro, Flor de Ajuruteua, Caranga, Bené bulau, Seu Rogério, Nego liga, Seu Zé do necrotério, Jabuti, Leão do mar, Tico neto, Maria pandeiro, Dona Santa, Severo, e Sarapanan.

 Francisco Weyl

Porto, 13 de Agosto de 2020

FOTOS: Carpinteiro de Poesia  

Ouça a CRÔNICA



Este texto constitui a sexta sessão do Microprojeto CRÔNICAS BRAGANTINAS, pela via da qual publico narrativas escritas e memorialísticas autorais neste espaço, além de audionarrações que podem ser ouvidas neste Blog ou no Canal do Carpinteiro no Youtube.


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É muito importante este teu projeto. Aguardo novas e deliciosas crônicas Bragantinas.

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