Muitas das minhas memórias talvez nem me pertençam, embora eu as tenha construído como uma colcha de retalhos a partir das coisas que eu vivi com as coisas me disseram.
E assim os fatos que narro são tanto meus quanto por mim apropriados, quando misturados a realidades e imaginários, idealizados ou experimentados, como se estivessem borrados em alguns pontos de um passado que é presente e (in)consciente.
Numa família grande de nove filhos, é natural que os mais novos se inspirem nos mais velhos, sendo, estes, determinantes às construções narrativas das epopeias e dramas pessoais de cada uma das células constitutivas do núcleo familiar.
A hierarquia dos lugares de pai e de mãe se tornam simbólicos na horizontalidade da irmandade, que respeita as tradições que a sustentam ao mesmo tempo que as desafiam a se chocar com os cotidianos pelos quais passam nas experiências que vivenciam.
Isso para explicar que, sendo o último dos filhos, extemporâneo, e apartado durante alguns anos dos irmãos mais próximos em idade, por razões de natureza econômica, tive que me desenrascar sozinho, construir meus próprios mecanismos e sonhos.
E isso, posso afirmar, fez-me desde a infância, um menino isolado, que se contentava, eventualmente, quando autorizado pelos pais, de ir a casa amigos vizinhos para brincar com brinquedos que eu próprio não tinha ou comer o que em minha casa não havia.
Recordo-me quando habitava a última casa do lado direito da Vila Alice na Pedreira, havia um terreno baldio contíguo à nossa casa, separado por uma cerca que eu atravessava por onde faltavam as estacas, e aproveitava para me perder no que eu pensava ser uma floresta, sonhando e desafiando seus habitantes perigosos, deixando-me estar por ali alguns minutos, nos momentos em que eu sabia que nem meu pai, nem minha mãe, e nunca meus irmãos mais velhos dariam pela minha falta, até que finalmente eu retornava para a realidade, deixando a minha coragem na mata.
Se eu me perguntar qual a importância deste espaço para a minha memória, agora, não saberia dizê-lo, entretanto, ao descrevê-la ouso me reencontrar neste espaço do mesmo modo que misturo a caminhada que fiz esta tarde da aldeia de Grade para o núcleo urbano de Arcos de Veldevez, durante cerca de sessenta minutos, a apreciar a paisagem, ao mesmo tempo em que me recordava do mar de Ajuruteua.
Mas, eu resolvi escrever esta crônica sobre o mar, exatamente por que a Roberta Mártires me disse que foi a Bragança e não conheceu Ajuruteua, pelo que eu me coloquei a pensar, em como pode alguém chegar tão perto, sem tocar no mar, como pode alguém do mar tanto gostar, sem nele nadar, até porque a Roberta navega, e é como um mar, um mar de amar, portanto, esta é uma crônica de amor para o meu mar.
A Roberta Mártires foi a Bragança, mas nunca foi a Ajuruteua. E eu fiquei a pensar como é que pode alguém chegar tão perto do mar sem nele tocar. E isso me remeteu a relações que as pessoas estabelecem entre elas com um simples olhar, ou com um escutar, ainda que as pessoas não se conheçam ou ainda que elas nem se tenham observado ou tocado, porque, mesmo numa distância física, elas se aproximam, entretanto, esta não é uma cronica sobre pessoas, mas uma crônica sobre o mar.
Porque todos nós temos um mar dentro de nós, todos nos temos um mar a atravessar, como um deserto, mar de sal, mar de sangue, mar de poesia. Todos nós, quando atravessamos o nosso próprio mar, nós passamos a ter força para conhecer outros mares, e outros mares tocar. E quando sentimos o mar e estamos nele a navegar, observamos suas calmarias, e, as vezes, tememos as suas tempestades. Mas, nem sempre somos os bons marinheiros, e entretanto, desejamos ser navegadores.
Esta é uma cronica sobre o mar que entretanto eu a faço a caminhar, quiçá, um dia, meu Pai Oxalá me faça escrever uma crônica sobre andar, enquanto eu estiver a nadar nas águas de Yemanjá.
Esta, não é um cronica de amor, mas é uma cronica de amar, amar um lugar que a gente sempre se põe a pensar, mesmo sem nele ir, um lugar ao qual a gente se transporta e que transporta a gente, mesmo quando a gente lá não mais está, porque, esta, não é uma crônica de amor, é uma crônica de amar.
E eu me ponho a pensar, o que me move, e o que nos move, a nós, humanos, o desejo de ir ao mar, e lá se deixar estar, ponho-me a me perguntar, por que é que eu gosto tanto do mar, porque, quando eu vou ao mar, eu escuto o som do vento, o murmúrio das ondas,sinto a areia sob meus pés, e com ela, misturo-me, a tal ponto de me reduzir a uma pequena partícula, ou a um pequeno grão de areia colocado solenemente numa praia sagrada,na qual eu desapareço do meu corpo, da minha carne, do meu ser, e me torno uma única sensação, onde sou eu próprio o mar, o mar de amar, sou eu a areia a espera da sereia, sou eu a ouvir o vento e esquecer o tempo, sou eu o caboclo que ouve o som do tambor que vem da ancestralidade de uma praia para onde eu fui tantas vezes quando menino, quando adulto, e quando velho, e que as minhas ancestralidades por lá passaram e que eu passarei quando me tornar também um ancestral das gerações que me sucederem.
É isso que me faz gostar do mar, é isso que me move ao mar, porque quando eu penso no mar, eu penso em amar, porque quando eu penso em amar o mar, eu penso em Ajuruteua, que é a minha praia, a praia que eu amo, a praia que eu adoro, a praia onde eu tenho lá uma casinha, uma casinha que é uma casinha da família, uma casinha dos meus irmãos, dos meus sobrinhos, das minhas sobrinhas, da minha mãe, do meu pai, e de todos os sobrinhos maridos das sobrinhas, e esposas dos sobrinhos, dos meus netos que são filhos dos meus sobrinhos, e todos estes meninos que nos tornamos quando lá chegamos, junto com os amigos que com os quais comungamos.
Esta não é uma crônica de amor, mas é uma crônica de amar, amar o mar de Ajuruteua, e este lugar que é a Casa do Professor, porque é o lugar que ele nos legou, e o espaço que ele nos entregou a nós, os Weyl, porque quando o profesor Nonato se deslocou para Ajuruteua, quando ele se deslocou para Bragança, ele nos levou de volta para lá, com a nossa família, porque, mesmo que todos lá tenhamos nascido, Bragança era um lugar em que sempre íamos passar férias, portanto, um lugar de onde saímos mas que jamais o deixamos, entretanto estabelecemos um vínculo como se fossemos estrangeiros a este lugar, mas quando nosso irmão professor Nonato se deslocou para Bragança, ao nos levar de volta com ele, compramos uma casa m Bragança e depois outra na praia, e passamos a ir em outros períodos que não apenas nas férias, então, o Nonato nos trouxe de volta às nossas memórias.
Memórias como estas destas crônicas que agora me ponho a narrar sobre todas estas memórias familiares e de pessoas que habitaram Bragança, e cujas estórias evocadas fazem parte de minha infância, ainda que eu não tenha vivido estas histórias. Memórias de irmãos, memórias de namoradas, memórias de avôs, memórias de rios, memórias de florestas, memórias destes lugares que são tão mágicos e portanto, preciosos, memórias de mártires, memórias de amares, memórias de amores.
Francisco Weyl
Vilela de Grade, Arcos de Valdevez, 27 de Agosto de 2020
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Este texto constitui a oitava sessão do Microprojeto CRÔNICAS BRAGANTINAS, pela via da qual publico narrativas escritas e memorialísticas autorais neste espaço, além de audionarrações que podem ser ouvidas neste Blog ou no Canal do Carpinteiro no Youtube.
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