Heráclito
Ferreira abria os desfiles militares do sete de Setembro com ar garboso, em seu
terno de linho, montado em sua motocicleta Harley Davidson, símbolo da
contracultura dos anos1970, período em que também adquiriu um projetor Pathé, e
começou a fazer sessões públicas de cinema no bairro da Aldeia, em Bragança do
Pará.
Estas
projeções ocorriam onde hoje é a Travessa Leão XXIII, entre a Alameda Leandro
Ribeiro e a Rua Henrique Dácia, diante da feira, e bem ao lado do comércio do
meu avô Odorico, a Casa Olinda, para onde eu ia durante as férias escolares, já
que eu habitava em Belém, e me maravilhava com o túnel de árvores que encobria o
Cruzeiro, e com os urubus a brigar pelas carniças dos peixes à frente da antiga
fábrica de gelo da família Constâncio Nery Figueiró.
Estava
com uns onze, doze anos, de passeio por Bragança com meu pai, quando ele, súbito,
para, aponta-me uma pessoa, e diz para eu ir ter com ela, tomar a benção, era o
compadre Otávio, mas eu, insubordinado adolescente, recuso-me em obedecer aquela
ordem, porque não via sentido em fazê-lo, deixando meu pai, Seu Zenito,
bastante chateado comigo, ao mesmo tempo em que demarcava também o que seria a relação
com meu ele e com o meu padrinho daí em diante.
Nesse
momento, eu era ainda menino, e nem imaginava que o Município começava uma fase
de decadência, em consequência do encerramento da Estrada de Ferro pelo Regime
Militar, que colocou uma pá de cal na cidade que um dia respirou a Belle
Epoque, com os seus casarões e suas famílias abastadas que usavam roupas
importadas, com as quais meu pai era envolvido, mas que, pelas circunstâncias
da crise econômica, optou por se deslocar desde Bragança para Belém, para
tentar uma vida nova, dar mais dignidade
aos seus filhos.
Recordo
das sessões de cinema organizadas pelo Doutor Heráclito, como o chamávamos,
apesar dele ser protético, tendo, posteriormente, respondido a processo pelo
exercício ilegal da odontologia, quando já se deslocara de Bragança para
Carutapera, no Município vizinho de Viseu, deixando em Bragança muitos amigos,
alguns dos quais admiradores dos discursos que ele gostava e costumava fazer nas
reuniões sociais, onde se destacava com uma oratória diferenciada de seu tempo,
sendo, por isso mesmo, um conquistador.
A
meninada, então, fazia a festa, e os adultos levavam as suas próprias cadeiras,
para sentar, sendo a projeção efetuada a partir de uma pequena janela de uma
casa para a parede branca de outra casa, e o foco, atravessava uma distância de
cerca de oito metros de terreno, por sobre as cabeças da plateia, que se
deleitava com aquela novidade dos filmes, estilo comédias de Charles Chaplin, ou
os filmes do velho Oeste de John Wayne.
Enquanto
fazíamos algum barulho a correr entre cadeiras e a ser ralhados pelos mais
velhos, os adultos, calados, entravam numa espécie de catarse, em comunhão com
as narrativas tipicamente americanas, com as quais se identificavam, e assim se
deixavam também dominar pela estética e pela ideologia de países que historicamente
dominaram o Brasil, entretanto, esta visão política à leste de Hollywood, eu somente
a viria a compreender, e a absorver, depois de adulto, porque, nesse momento,
tudo em mim ainda é encanto.
Mas, quem
nasceu, morou ou passou por Bragança do Pará lá pelos anos de 1970, sabe o que
representava quando a guitarrada “Moendo Café”, de Poly e Seu Conjunto tocava
pelas "bocas de ferro" dos antigos alto falantes picape, do lado de
fora do Cine Olímpia, na antiga praça Deodoro da Fonseca, hoje praça Antônio
Pereira (também conhecida como praça do Coreto).
Naquela
altura, nem havia televisão, apenas a Rádio Educadora, pelo que o Cinema
ocupava um lugar de honra para a cultura municipal, com sessões aos finais de
semana, matinês para crianças, e sessões noturnas para os adultos, conforme a
memória do pesquisador autodidata José Ribamar
de Oliveira, autor de várias obras sobre a história a cultura de Bragança do
Pará.
Imortal
criador da seccional regional da Academia de Letras do Brasil no Município, José
Ribamar de Oliveira conta em “A Alma das Ruas” - sobre a qual este
humilde cronista teve a honra de realizar um vídeo - que o primeiro cinema de
Bragança pertencia à família Nazeazeno Ferreira, que hoje batiza a avenida que
liga o Município a praia de Ajuruteua.
Este primeiro cinema de
Bragança se localizava na Travessa Coronel Antônio Pedro, esquina da Rua General
Gurjão, onde hoje funciona o depósito da empresa Jomóveis, entretanto, na
altura, o espaço pertencia à firma Braga & Braga, fato este narrado por
José de Ribamar Oliveira ao pesquisador Cristóvam Pamplona Neto, durante o
documentário “O majestoso cine Olímpia”, do qual este cronista também
participa, e narra memórias.
José Ribamar de
Oliveira conta que o cinema mudo era uma novidade, sendo que as famílias mais
ricas de Bragança viviam em plena Belle Epoque, com os seus “coronéis” engomados,
e muito bem vestidos, entretanto, com o passar dos tempos, este primeiro cinema
se deslocou para onde hoje funciona a farmácia de Jorge Cardoso, à esquina da Rua
Cônego Miguel com a antiga praça Deodoro da Fonseca (praça Antônio Pereira, ou do
Coreto).
E
foi neste espaço que funcionaram o Cinema Recreio, depois Cine Avante, depois
Cine Vargas, mas havia também o Cine Nazaré, que se localizava na Rua Floriano
Peixoto, entre a Rua Cônego Miguel e a Travessa de Vigario Mota, mas este
espaço pertencia à família Perilo Rosa, sendo herdado por Ribamar Rosa, ou
seja, apenas depois destes espaços, é que passou a existir o Cine Olímpia.
E,
bem onde hoje é o Hospital das Clínicas de Bragança, diante da praça do Coreto,
funcionava um Teatro, sendo que, antes de serem empossados, os prefeitos
participavam de tertúlias nestes espaços culturais, ao fim das quais eram
conduzidos por populares em cortejos pelas ruas da cidade, pelo que esta praça representa
um laboratório Histórico para o imortal José Ribamar de Oliveira, que
testemunhou as boas festas sociais, tornando-se, ele próprio, um dos mais
respeitados cronistas e memorialistas de Bragança do Pará.
Quando se contam estas histórias, temos que
puxar os fios das memórias, porque, falar das memorias do cinema em Bragança é
falar de uma memoria particular, emocional, bucólica, como se voltássemos àquele
lugar passado, com a impressão de que nunca dele saímos, e ficamos com esta sensação, particular, com
um pedacinho de um universo, que é ainda maior, mas que nos localiza, no tempo,
como numa regressão.
E
o espanto existia diante daquele novo, que me maravilhava, o cinema na mente de
um menino que fui, e ainda sou, um acontecimento
que se instala e se processa na memória, atravessa o tempo, e hoje me faz ser
realizador, e pesquisador desta arte, portanto, você, menino, vai ao cinema
como um menino, apaixonado, com este “eu vou”, ou “eu fui” ao cinema em
Bragança do Pará, e ainda agora, estou junto com o cinema, e assim o tempo que
foi, ainda é, em mim.
A
alegria de encontrar os amigos, e voltar com eles a sorrir, em minha memória,
mas, a única memória que eu tenho do cinema de Bragança, mesmo, é esta do Cine
Olímpia, onde hoje funciona o Museu da Marujada, na praça do Coreto, onde havia
também um raspa-raspa, vendedores de balões, coloridos, entretanto, minha
família era razoavelmente humilde, e nem sempre tinha dinheiro para muitas
coisas, quanto mais para gastos em sessões de cinema, e isso, apenas, nas férias, pelo que eu tinha de
as aproveitar intensamente, porque eram tão curtas, e quando eu entrava no
ônibus de volta, nem sei se eu chorava, ou se eu sorria, ao já ter saudades
desses dias.
E quando eu ia para uma
sessão de cinema significava que eu iria encontrar com amigos, mas, eu estou vindo
de fora, como um estrangeiro, para a minha própria cidade, e, quanto mais da
terra, mais estrangeiros nós somos, numa perspectiva dionisíaca, e sem nenhuma máscara
trágica, eu precisava retornar para o lugar em que nasci, e encontrar meus
velhos amigos, dos quais perdia referências, e suas afetividades, aos poucos,
também se dissipavam, tornando-me, desde já, um nômada, desses que se desloca,
e segue sempre em frente de tal forma, que, já nem sabe mais para onde voltar,
porque sempre seguiu a sua própria estrada.
Havia
uma excitação na década de 1970, olhar o outro, a outra, seu comportamento,
suas roupas, Bragança sempre foi uma
cidade que se olha, e se inveja, e fala sobre seus filhos, para bem ou para
mal, dentro de uma estratificação social, que, apenas agora, eu a observo,
porque, naquela altura, sentado num banco da praça à frente do cinema, eu nem
percebia isso, ou, talvez, até intuísse, espontaneamente, ou violentamente,
mas, apesar do estatuto financeiro de pobre, nossa Mãe Zinha nunca deixou a
gente feio ou mal vestido, fazendo ela roupas dignas de grandes estilistas, que
causavam inveja a todos, entretanto, eu só entrava no cinema quando vinham meus
parentes de Brasília, e então sentia aquela magia, no apagar das luzes.
Francisco
Weyl
Porto,
6 de Agosto de 2020
Ouça a CRÔNICA
FOTOS: Arquivo Aviz de Castro, a partir do filme "O Majestoso Cine Olímpia", de Cristóvam Pamplona Neto
Este texto constitui a quinta sessão do Microprojeto CRÔNICAS BRAGANTINAS, pela via da qual publico narrativas escritas e memorialísticas autorais neste espaço, além de audionarrações que podem ser ouvidas neste Blog ou no Canal do Carpinteiro no Youtube.
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