As férias em Bragança eram uma alegria, estranha.
Eu a dividia entre dois espaços, a casa da Mãe Quinha e do Pai Bento, e a casa do Padrinho e da Vovó.
Bento e Maroquinha eram pais do Zenito, meu pai José.
E Padrinho Odorico e a Vó Augusta haviam criado Zinha, minha mãe, Josefa.
Como sou extemporâneo caçula, de uma família de nove filhos, estar na cidade em que nasci durante as férias servia-me para reencontrar dois irmãos nascidos pouco antes de mim, mais próximos em idade.
Um deles morava com os pais do papai, e o outro, habitava com os pais adotivos de minha mãe.
A poeta Cirene Guedes, em pose, com a seu único livro em vida, Poemas MolhadosQuando deixaram Bragança por razões de natureza econômica, meus pais levaram a Belém somente os irmãos e as irmãs mais velho.
E foi numa inesquecível viagem na antiga Maria Fumaça que a família Weyl mudou o curso de sua própria História.
Mas disto eu só a recordo de ter ouvido falar.
Há muitas memórias que eu só tenho de ouvido, então, as recrio.
Ou as (re)invento.
E nem sei se esta que Vos narro é uma invenção ou uma história, mas, é como ela agora me ocorre.
E eu preciso conta-la.
Os irmãos mais velhos tinham mais o que fazer Belém, estudavam, trabalhavam, em meados dos anos 1960.
Mas, lembro, morávamos na Rua da Marinha, na Marambaia, depois, na Pedreira, e mais uma vez, na Marambaia.
Penso que meu nomadismo nasceu aí, passei a infância em mudanças de casas, também porque meus pais nem sempre tinham dinheiro para bancar os aluguéis.
Na Pedreira, morávamos na última casa do lado direito da Vila Alice, por detrás da Igreja Nossa Senhora Aparecida.
Por detrás da Vila tinha um muro contínuo que dava para o quintal de todas as casas, a fazer fronteira com o terreno da Igreja.
Muitas vezes em menino andava por cima desse muro, que devia ter uns dois metros, era uma aventura.
Sem os manos mais próximos em idade, sobrava-me correr com os miúdos, entre as ruas Barão e Angustura, quando não, estava na escola, que pertencia à Igreja, e cujo um dos pavimentos dava para o quintal da minha casa.
Algumas vezes, no intervalo das aulas, eu via minha Mãe a estender roupa no varal.
Um dia cabulei aula, meus amigos indagaram por mim a minha Mãe, e quando cheguei a casa, passei uma vergonha tamanha.
Por que não foste pra aula, Francisco? Onde estavas? Eu fui pra aula, Mãe. Não minta, teus colegas perguntaram por ti.
O detalhe do quintal que havia esquecido.
Tive sonhos contínuos em que voltei ao quintal desta infância.
Mas, voltando a Bragança, nas férias escolares, eu podia estar com estes meus dois irmãos mais próximos em idade, e com os quais, eu podia brincar, e tentar acompanhar as peripécias nem que fosse num curto período de tempo.
E é mais ou menos por este período da década de 1970, em Bragança, que eu tenho um encontro com a morte.
Recordo nitidamente o Padrinho a ler uma carta de Mamãe, a informar que meu irmão mais velho havia falecido, em Belém.
No momento, chorei, mas tenho poucas lembranças deste irmão, embora ainda reze por ele.
As casas de meus quatro avós ficavam no bairro da Aldeia, sendo, uma, defronte a feira, e outra, a caminho do matadouro.
Faz parte deste tempo ainda as sessões de cinema organizadas pelo protético Heráclito, cujos filmes assistíamos entre duas moradias, próximo ao Cruzeiro.
De um lado, numa pequena sala, o projetor.
E de outro, numa parede, a projeção.
Não recordo os filmes, mas emocionado os assistia, e em silêncio, fascinado com a magia.
Mais tarde, adulto, chorei a ver “Cinema Paradiso”, recordei minhas primeiras experiências com cinema, naqueles tempos bragantinos.
Os tempos voam.
Meus avós mudaram, Pai Bento e Mãe Quinha foram morar conosco na Marambaia.
E a morte veio me visitar outra vez.
Primeiro, foi a Mãe Quinha, um ano depois, Pai Bento, que já estava cego, também partiu, mas de tristeza pela falta da esposa.
Em Bragança, Vó Augusta adoeceu, diabetes, ficou cega, e depois faleceu.
Sozinho, Padrinho foi para Vila Fátima.
E é mais ou menos nestes períodos que Cirene Maria da Silva Guedes entra na minha vida, ou eu na dela.
Os processos são confusos na mente, muitas vezes somos traídos pelo que idealizamos da realidade.
O fato é que eu não tenho nenhuma lembrança da Cirene nos tempos da Aldeia, apesar de que ela também morava lá com Vovó e Padrinho.
Mas já a vou encontrar, entretanto, na casa da Travessa Cônego Miguel, mais ao centro de Bragança, defronte aonde hoje funciona o Fórum Municipal.
Lembro que a geladeira da casa estava sempre cheia de coisas que eu não podia mexer.
Eram produtos que meus pais não tinham posses para adquirir e que faltavam em minha casa.
Aquelas novidades despertavam a minha curiosidade de menino faminto.
Às visitas, nada faltava.
Cirene se dedicava muito às aparências, cultuava amizades abastadas, e parecia ser também uma mulher de posses, o que não correspondia à verdade, antes, ao contrário, contraiu dívidas que teve dificuldades em quitar.
Ela era prima de minha mãe, Dona Josefa, tendo sido com ela criada, uma espécie de filha mais nova de Mamãe.
Porque, quando o Padrinho - Seu Odorico (o homem que criou a minha mãe) casou com a Dona Augusta (a quem eu chamava de Vovó), o casal já formou família com cinco pessoas.
Além de Cirene, que vem a ser sobrinha do Padrinho, somava-se a ela, na prole, a minha Mãe e a irmã, Celina, órfãs de pai e mãe, que eram criadas pela Vó Augusta.
As irmãs viveram muitas histórias, embora estas memórias - após a morte delas - persistissem apenas na cabeça da Cirene, que as recontava, acrescentando pontos.
Odorico e Augusta eram duas pessoas humildes, que se apaixonaram e tiveram coragem de criar três crianças, em Tentugal, migrando posteriormente para Bragança.
E foi neste pequeno vilarejo que tudo começou e é onde estão enterrados os meus antepassados pela linhagem materna, num Cemitério que já nem mais existe, cujo terreno foi invadido.
Hoje pertencente ao Município de Santa Luzia do Pará, Tentugal é margeado pelo Rio Caeté, e pode ser acessado por um ramal, a partir da Rodovia Pará-Maranhão.
Com 115 quilômetros de extensão, antes de desaguar no Atlântico, o Caeté atravessa e influencia o trabalho e a vida de diversas comunidades do Nordeste do Pará.
Nasce nos dendezais do Município de Bonito, passa pelo Arraial do Caeté, no Município de Ourém, atravessa Tentugal (Santa Luzia), chega a Vila de Mocajuba, em Bragança do Pará.
Outrora navegável, o Caeté não morreu porque as rodovias, que acabaram com as estradas de ferro, retiraram as comunidades de suas margens, desde a década de 1960.
Apesar de receber as águas de rios como Jequi, Cajueiro, e Curi, à margem direita; e de pequenos igarapés, à margem esquerda, o Caeté apresenta trechos pouco profundos.
Isso porque alguns fazendeiros da Região transformam o seu leito em lixeira.
Atiram detritos e resíduos, tocos e galhos de árvores, que eles próprios derrubam em suas terras.
O fechamento dos afluentes corrobora para que o Caeté baixe o leito e dificulte a navegabilidade.
É o “riocídio”.
E se torna mais poluído a partir das Vilas de Mocajuba e do Arimbú (Bragança), sob a influência de alguns afluentes, a partir deste trecho.
Mas, junto com o nascer da Lua, por detrás das matas do Camutá, o espelho do Caeté revela um espetáculo mágico aos moradores e visitantes da cidade de Bragança do Pará.
Da orla da cidade, partem e chegam diariamente dezenas de embarcações com peixe, produto que alimenta grande parte da economia local.
E é desta história e destes cenários poéticos e contraditórios que emergem as histórias e as memórias que constroem esta crônica sobre Cirene Guedes.
Eu chamava a Cirene de Tia, mas foi muito tardia a relação familiar que estabelecemos.
Já vos contei que sou o mais novo de nove irmãos, e que cresci e me criei em Belém.
Apenas me aproximei de uma distante Tia Cirene depois que fui morar em Bragança, em 2014.
Foi quando comecei a fazer filmagens com ela.
Captei depoimentos para usar sua voz em off num filme que ainda nem montei.
E que é parte de uma pesquisa existencial e artística, que se revela em filmes pessoais, em que meus familiares estão presentes.
Sempre estou num processo de busca existencial em meus projetos e ter reencontrado com minha velha e distante Tia fez com que eu renascesse.
Comecei a sentir minha Tia, ouvir os seus causos e as suas histórias.
E isto me transformou, porque algumas dessas narrativas constituíam a história da minha família.
Titia me trouxe de volta a minha Mãe e o meu Pai.
E meus avós.
Minha infância.
E ela também se trouxe junto com eles.
Tomávamos café, juntos, aos finais de semana.
Passei a frequentar a casa que ela habitava na Rua Dr. Justo Chemont, no bairro do Riozinho.
E a levava para as casas em que eu habitei, em Bragança, na Rua Dr. Roberto, e na Marechal Floriano.
Ensinou-me a fazer pão, cantarolava, poetava.
Tornei-me mais humano, portanto, mais poeta.
Não a desejei compreender, quando muito a escutava.
Não a indaguei, quando muito ouvia suas histórias e estórias.
Não a editei, quando muito senti seus poemas e seus cantos.
Tia Cirene deixou cadernos, cartas, rabiscos, e muitas memórias.
Criada pelos meus avós maternos, Odorico Alves da Silva e Maria Augusta Almeida e Silva, era filha de Severino Guedes de Araújo e Laura Alves da Silva.
Criou Edileuza Gercina, e seus filhos-netos, Jesiel Júnior, e Amanda Quadros.
E ao perder a filha Laurilene Guedes, por erro médico, sucumbiu a uma dor infinita.
Chegou a ganhar causas judiciais com relação a este caso, que resultou não resolvido com a sua morte.
Sofria com diabetes, além da solidão da velhice.
Morava sozinha, tinha de dar conta de uma série de questões que somente ela própria sabia como deveria proceder, a bem do bem dos que dela dependiam.
Vivia da aposentadoria e da ajuda de familiares, e amigos.
De corpo frágil, alma rija, e com os olhos a brilhar, quando recordava memórias da vida.
Bem humorada, contava causos, inventava narrativas.
Enfraqueceu o corpo, jamais a alma.
Escrevia poemas e canções com a velocidade de um rapper.
Autodidata, aprendeu inglês, e traduzia notícias para a Rádio Educadora de Bragança, onde foi radialista-colaboradora.
Teve desilusões amorosas, passou pelo Convento, foi professora, e bancária.
Tia Cirene foi internada no Hospital das Clínicas numa Terça-Feira (11/08/2015).
Na tarde do dia anterior (Segunda-Feira, 10/08/2015), deixou-se fotografar por Dri Trindade.
Quando foi transferida de Bragança para Belém numa ambulância (15/08/2016) estava lúcida, contava causos.
E esperançosa com o primeiro livro que iria lançar, “Poemas Molhados”.
Entre os motivos que a teriam levado a falecer, o tabagismo, a diabetes, princípio de pneumonia, perda de líquido pela urina, perda de sangue, paradas cárdicas, infecção generalizada, e suspeita de um tumor no útero.
Curiosamente, morreu a 16 de Agosto de 2015, dois dias após o lançamento de seu único livro, editado pela Academia de Letras e Artes de Bragança – ALAB.
Na ALAB, ela ocupava a cadeira Nº 6, que tem como patrono é Dom Eliseu Maria Coroli.
Mas, uma história fascinante é contada por Nélio Fernando Gonçalves no prefácio de seu livro, cujo lançamento ela não compareceu porque já estava hospitalizada.
O sugestivo nome da obra “Poemas Molhados” se deve ao fato de um temporal que inundou a casa da Cirene, que por pouco não perdia toda a sua produção poética.
Antes que o alagamento provocado pela chuva fizesse desaparecer a obra de Cirene, Nélio reuniu os textos num livro de 400 páginas, tendo convocado outro escritor, José Leôncio, para o ajudar, na curadoria.
Estava com 74 anos quando morreu no dia 16 de Agosto de 2016.
Nasceu em 27 de Novembro de 1941.
Seu corpo foi velado na Igreja de São Benedito.
E sua campa está localizada no Cemitério do Campo da Saudade.
Seu espólio está sob mus cuidados, são cartas, fotos, poemas, imagens de santo, calendários.
Foi-me entregue dentro de suas sacolas de supermercado.
Não consigo traduzir o que eu senti enquanto caminhava debaixo do sol quente com aquele material.
Tão pouco, mas tanto.
Quase nada, mas tudo.
Francisco Weyl
Grade, Portugal, 16 de Julho de
2020
FOTOS/FILMES: Dri Trindade / Dica Weyl /Arquivo Francisco Weyl
+ SOBRE CIRENE GUEDES
Notas:
http://tribunadosalgado.blogspot.com/2019/11/cirene-guedes-poeta-de-braganca-do-para_26.html
http://tribunadosalgado.blogspot.com/2017/08/requiem-dois-anos-sem-tia-cirene-guedes.html
http://tribunadosalgado.blogspot.com/2016/08/memoria-um-ano-sem-poeta-cirene-guedes.html
http://tribunadosalgado.blogspot.com/2016/08/cirene-pastoral-da-juventude-homenageia.html
http://tribunadosalgado.blogspot.com/2016/08/cirene-braganca-conta-1-ano-sem-sua.html
Filmes:
https://www.youtube.com/watch?v=0msHFrzLrmk
https://www.youtube.com/watch?v=a4ilCVcTKX8
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