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CRÔNICAS BRAGANTINAS: Os tesouros do Mestre Romão

Só existem duas coisas no mundo para vencer as dificuldades, o estudo e o trabalho.

Com este conselho do pai, Romão Vieira de Sousa construiu um exemplo de amor a terra.


Mestre Romão, em seu escritório (Foto: Dri Trindade)

Nascido em Patalinho, no dia 18 novembro de 1930, este bragantino habitou o número 100, da Travessa Aluísio Ferreira, bairro do Perpétuo Socorro.

Mesmo afastado da escola por questões de necessidades pessoais, jamais abandonou o interesse pela leitura, tornando-se por insistência própria numa espécie de pesquisador autodidata.

“A professora disse que eu tinha vocação, já o meu pai disse: tu não vais para o estudo, mas vai para o trabalho, eu não gostei, mas não respondi, então papai me mandou tomar de conta dos gados, das roças e das canoas, e eu fui, trabalhei duro, na pesca e na agricultura”.

Foi casado com Dona Almerinda Barbosa Vieira, com quem teve dezessete filhos.

Mestre Romão trabalhou como delegado sindical rural durante dezoito anos.

E atuou como Comissário de Polícia por dezesseis anos, tendo sido ainda fiscal de imposto, durante quatorze anos.

Por várias vezes, sentiu o gosto de viajar na Maria-Fumaça e desfrutar da linha férrea Belém-Bragança.

E aproveitou os seus deslocamentos profissionais para as colônias, praias e campos, também para conversar com pessoas, e fazer anotações sobre as localidades que visitava.

Quando chegava a casa, organizava os rascunhos e, de memória, fazia novas anotações, além de caricaturas.

E desenhos, que representavam as habitações e locais mais importantes destas vilas e povoados.

Frame (recortado) de um dos desenhos de Mestre Romão

“Desde 1944, comecei a visitar as comunidades que Bragança tinha, visitei duzentas e trinta e seis até localidades, até 1980, fiz as caricaturas, e os desenhos das áreas marítimas, áreas de colônia e as de campo, fiz mapas quase fiéis, no local, ou, de cabeça, quando chegava a casa”.

Mestre Romão gostava de folhear as páginas amareladas de diversos cadernos que guardava carinhosamente no escritório, em casa.

E mostrava anotações e desenhos, enquanto contava estórias e histórias para professores, estudantes e curiosos que lhe pediam auxílio quando o assunto era Bragança do Pará.

Mas o problema é que toda esta sua produção intelectual, textual, e pictórica, nunca foi acondicionada em locais adequados, e pode se perder.

Gentil, ele deixava qualquer pessoa manipular os seus cadernos, que ram tesouros bem guardados na estantes de seu escritório.

Simpático, Mestre Romão sorria e dizia: “se perder, perdeu”.

E assim, página a página, desenho a desenho, ficávamos a saber como tudo começou nesses povoados por ele visitados, as narrativas das pessoas, o comportamento e a formação das sociedades.

Eram acontecimentos de comunidades como Taperuçu Campo, Tamatateua, Caratateua, Campo de baixo, Comunidade Bom Jardim, Urubuquara, Cajueirinho, Tracuateuazinho, entre outras.

Memórias de praias como a do Grilo, do Esquece,  do Carla, do Pilão, do Peru, do Chavascal, do Quatipuru Mirim, da Marinha, do Lago do povo, do Maçarico, e dezenas de outros rincões onde moram bragantinos, muitas vezes esquecidos pelo Poder Público.

Frame (recortado) de um dos desenhos de Mestre Romão

Mestre Romão puxava à excelente memória para narrar fatos que eram preciosidades à História de Bragança:

“Conheci muitas comunidades e praias, aqui não tinha nem barco geleiro, ia lancha daqui buscar o peixe, e a gente é que secava o peixe”.

Entre tantas histórias, evocava a do Pajé Severo Trajano, de Bacuriteua, e a da “Matinta-Perera” da Vila de Jurussaca.

E fazia uma observação histórica sobre o fato de Bragança perder os seus territórios:

"Primeiro, porque os intendentes abandonaram Viseu; e, depois da derrota de Augusto Corrêa para César Pereira, perdeu-se a Vila de Urumajó; e, na sequência, a Vila de Quatipuru; Aurélio do Carmo esqueceu Primavera; o prefeito Antônio Barros abandonou Santa Luzia; e João Mota abandonou Tracuateua".

Mestre  Romão era organizado em suas pesquisas.

“Eu vou as sessões da Câmara, e escuto notícias de rádio, Bragança completou vinte e seis prefeitos com o Padre Nelson, e eu só não conheci quatro, porque vinte e dois prefeitos eu conheci, e acompanho o trabalho deles, anoto e deixo por aí, mas quero fazer um trabalho com isso”.

Morreu sem completar sua obra, que nos legou com generosidade neste curto encontro que tivemos numa tarde ensolarada, da qual não esquecerei.

Mestre Romão recebe o Diploma do Mérito Cultural  (Foto: Dri Trindade)

Depois de nossa conversa, ainda o encontrei espontaneamente na sala de espera de um Hospital público.

Aproveitei para entregar um Diploma do Mérito Cultural, emitido pelo Festival Internacional de Cinema do Caeté em sua homenagem (2014), mas em cuja cerimônia ele não compareceu porque já estava doente.


Frame (recortado) de um dos desenhos de Mestre Romão

Mestre Romão morreu, ficou-me esta História entre alegre e triste.

Bragança vive em suas Histórias, Mestre Romão vive em minha recordação, como um tesouro, precioso.

Um dia quem sabe a família dele digitaliza seus textos e desenhos e esta produção seja disponibilizada aos estudiosos e cultuada pelos amantes de Bragança do Pará.

Oxalá a secretaria de cultura ou outras Instituições se interessem em resgatar estes tesouros.


Carpinteiro de Poesia Francisco Weyl

10 de Julho de 2020


Fotos: Dri Trindade

Frames do filme documentário “Memórias de Taperaçú-Porto”, de Francisco Weyl

Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=dz-96Pt3wow&t=25s


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Este texto constitui a primeira sessão 
do Microprojeto CRÔNICAS BRAGANTINAS, 
pela via da qual publico narrativas 
memorialísticas autorais neste espaço.



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