Um filme sobre Cabo Verde - e que jamais havia sido exibido no país – abriu o Festival Internacional de Cinema da Praia, #PLATEAU.
E o realizador, moçambicano, filho de mãe brasileira e de pai português, João Sodré, por pouco não perdia este filme.
Sem os originais – editados - e sem as imagens brutas (em 16 milímetros), o que Sodré tem em mãos é apenas a cópia que foi exibida, em DVD, a qual, projetada, ainda criou uma atmosfera plástica tipicamente cabo-verdiana, como se a névoa do Saara encobrisse a sala de um Cinema que, aliás, estava fechada há cerca de dez anos.
O #PLATEAU, portanto, reinaugurou este espaço, devolvendo-o aos cabo-verdianos.
E a cultura audiovisual de Cabo Verde – como de vários países africanos em que são altas as taxas de analfabetismo - depende basicamente da televisão, consequentemente, dos filmes hollywoodianos.
Cena de abertura do filme #ALMATAFIKA
Sabemos todos nós o quanto são danosos estes processos para a formação das consciências históricas dos povos africanos, na medida em que estes meios difundem os velhos modelos de dominação colonial.
Há que alterar, portanto, os paradigmas culturais.
É por esta razão que uma das funções primordiais deste Festival, de acordo com o presidente da Associação Nacional de Cinema, o realizador Júlio Silvão, é exatamente este de resgatar pela arte a própria História de Cabo Verde.
Sem que jamais tivesse sido aqui exibido, fato que provocara grande tristeza no próprio realizador, conforme o próprio me confessou, o filme de João Sodré (“Alma tá fika”) – que já estava para se tornar um mito, caso desaparecesse – trás para Cabo Verde a Diáspora em si própria.
Um filme sobre a terra, mas distante da terra. Uma obra alma da pátria, longe da pátria.
Ao devolver o Cine-Praia aos cabo-verdianos, portanto, o Festival Internacional de Cinema #PLATEAU também devolveu o cinema, pela via de um filme que traduz de forma poética a passagem de diversos ciclos sociais e econômicos de Cabo Verde.
Um dos grandes dilemas da cidadã e do cidadão nascido em Cabo Verde é o de decidir se parte de sua terra em busca de dias melhores ou se permanece em sua terra, com os seus. Mas, independentemente de sua escolha, entretanto, ele tem que lutar, sol a sol. Em Cabo Verde ou na Diáspora, no interior de sua própria solidão é condição humana.
Com o realizador João Sodré
“Alma ta fika” faz um percurso histórico, reflete a cultura, a sociedade, pela via de cenas, falas e músicas de criadores artísticos da cena cabo-verdiana.
As imagens intercalam cenas de pessoas em diversos momentos e espaços (interiores e exteriores), nos centros urbanos e zonas rurais, entre Santiago e São Vicente, num verdadeiro passeio sonoro musical em que assistimos extasiados artistas como Voginha, Vasco Martins,
Cesária (descalça) Évora, Vlu, Antônio denti d'Oro, Luchinha de Mindelo, entre outros nomes que são a própria alma musical de Cabo Verde.
Ouvimos a partir de algumas destas falas esclarecimentos sobre as origens da morna, do fu-na-ná, da finaçon, além de referências aos movimentos dos “claridosos”, B.Leza e Baltazar, pelo que vamos compondo um cenário da riqueza e das influências musicais e sonoras de Cabo Verde.
Mais que um registro histórico, com recursos a fotografias e memórias narradas pelos depoimentos, de Leão Lopes e Eutrópio Lima, entre outros, este filme, portanto, é uma obra que provoca identificação imediata com a história e cultura de Cabo Verde.
Com algumas cenas espontâneas e outras “compostas” para o filme, assistimos em imagens e fotos a presença de crianças e jovens e adultos nas ruas, algumas vezes em condições desumanas, isto num tempo (anos 1940/1050), quando a fome assolou Cabo Verde.
Mas, sem se deixar levar pelo “pieguismo” e pelo denuncismo das contradições sociais, o realizador João Sodré utiliza-se do que este país tem de essencial, a música, para “documentar” as evoluções dos processos históricos e sociais.
Césaria Évora, quase menina
Não há falas nestes momentos, apenas sons, músicas, poéticas, para que o público possa dessa forma se apropriar da magia do cinema e então fazer a sua própria leitura destes acontecimentos com os quais tem de aprender se quiser construir o presente e o futuro deste país.
Assim sendo, acompanhamos com a projeção deste magnífico filme a cenas da comunidade dos Rabelados, intercaladas com cenas de concertos musicais; cenas do Batuco, com contrapontos de cenas interiores de músicos executando seus instrumentos; cenas onde ouvimos tanto depoimentos de pessoas quanto canções e letras que remetem por exemplo ao campo de concentração de Tarrafal ou às tocatinas às portas das casas de Mindelo; cenas de cotidiano das ruas de mulheres a fazer fogo e comida no meio da rua, ou nas feiras, nos mercados, na zona urbana da Praia, e cenas de pessoas a trabalhar na agricultura, entre estas imagens de bodes, cabras, e de crianças a brincar; cenas da Tabanka, que inclusive foi proibida mas que resistiu e sobreviveu, com o Rei Simão, a se manifestar e a caminhar pelas ruas da Assomada, onde, nos desfiles, também são distribuídos aguardente aos participantes; cenas da moagem de cana da Cidade Velha, ainda com bois, na moagem desta importante cultura econômica que é o grogo.
Cenas que nos colocam diante de um Cabo Verde que resiste com o tempo e que se vai transformando, inclusive, graças aos seus próprios artistas, responsáveis que foram por levar a cultura deste país além-mar, numa vivência tão diaspórica quanto este filme, pelo qual também são responsáveis, na medida em que emprestam a sua musicalidade e a sua alma para pintar esta História, da qual são protagonistas, com as suas falas e os seus cantos, reveladores que são das influências que correm no sangue e na cultura cabo-verdiana.
E como os processos que atravessam as criações artísticas são diversos e como este país – Cabo Verde – é atravessado por diversas influências, seja pelo sua história seja pela sua privilegiada localização geográfica em meio ao oceano Atlântico, entre os continentes Africano, Europeu e Americano, há que registrar aqui que ninguém menos que um português (Pedro da Conceição) apaixonado pelo Brasil – onde também já lá esteve – o responsável pela entrada de “Alma Ta Fika” no #PLATEAU. Porque, para além de arqueólogo, Pedro é realizador, sendo assistente de João Sodré, cuja obra conheceu, razão pela qual a indicou para compor o Festival.
© Carpinteiro
NOTA: Após postagem deste texto, o Senhor realizador JOÃO SODRÉ solicitou-me que corrigisse a informação sobre o nome das pessoas responsáveis pela exibição de seu filme em CABO VERDE, conforme texto postado na timeline de meu #FB, hoje, segunda-feira, 1/12/2014:
NOTA: Após postagem deste texto, o Senhor realizador JOÃO SODRÉ solicitou-me que corrigisse a informação sobre o nome das pessoas responsáveis pela exibição de seu filme em CABO VERDE, conforme texto postado na timeline de meu #FB, hoje, segunda-feira, 1/12/2014:
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